Parte II – O testemunho “de fogo” do autor do blogue
Este não é o testemunho de alguém que tenha estado cercado pelo fogo de 15 de Outubro de 2017, mas sim alguém que não esteve lá por mero acaso. Não foi possível uma deslocação para uma das áreas afetadas naquele fim de semana e início de semana e assim, nunca surgiu a hipótese de ir tentar salvar algumas cerejeiras, com 10 metros de altura, que embora estivessem em terreno limpo haveriam de morrer secas com o calor devido ao facto de tudo em seu redor ser mato e floresta de eucalipto. Ali mesmo ao lado, noutra aldeia, dois irmãos morreram no seu apiário, a tentar socorrer as suas abelhas… Ainda que muitos de nós sintam um instinto profundo para ajudar e estar em comunhão com a natureza, é certo que a agricultura é vista como uma atividade ingrata e até suja, como que indigna. Todavia, é ela que nos garante a alimentação e mesmo a experiência de plantar uma árvore e poder acompanhar o seu crescimento. É algo insubstituível, mesmo em termos tecnológicos; um caminho seguro para conhecer o que realmente está em causa quando se fala em proteção ambiental.
Voltando àquele 15 de Outubro, durante a noite as comunicações, fornecimento de eletricidade, haveriam de falhar. Contaram-me, no local, que foram gastos milhares e milhares, de litros de água, por habitação, naquela madrugada, desesperadamente, salvando apenas algumas casas, algumas hortas, algumas árvores. Após a água se esgotar, as poucas pessoas que se recusaram a abandonar as povoações, utilizaram a água de tanques agrícolas para apagar o fogo ali mesmo junto de casa. Os bombeiros ficavam já parados junto das habitações, sem água e sem poder respirar, a aguardar o fogo passar ou a ajudarem como podiam. Era um mar de chamas e de fumo, visível a partir de qualquer ponto alto.
Eu não estava lá, mas sabia o que era estar cercado por outro fogo e quando cheguei ao local, a 1 de Novembro de 2017, vi as diferenças na destruição provocada e percebi que a força era outra. As cerejeiras estavam de pé, com o tronco aparentemente ainda vivo e as folhas secas todas penduradas, nenhuma havia sido queimada. Naquele Outono e Inverno não haveria de chover e morreriam desidratadas, afinal, deveria tê-las regado, em pleno Inverno…
Muitas oliveiras, algumas centenárias, foram queimadas até à raiz, ficando apenas o molde na terra: um buraco com cores cinza, verde oliva, amarelo e vermelhos.
Muitos animais fugiram ou morreram mas, insetos como as formigas haviam sobrevivido. Num caminho algumas movimentavam-se nervosas, como que desorientadas sobre as cinzas. Talvez durante milhares de metros em redor não havia nada. Deixei cair uma uva e dirigiram-se a ela, num ápice: estavam sôfregas, desesperadas.
Recordo também a ida ao centro de donativos onde vi uma pessoa pedir uma tigela, havia perdido quase tudo: casa, árvores, roupa… Exceto o mais valioso, ou seja, a vida e a esperança. Os seus olhos eram vazios e na sua expressão uma urgência com calma imposta pelas circunstâncias em que não havia escolha. No armazém havia um registo de entrada, quem dava e o quê, e depois, eram montes, até ao teto, um pé alto de cerca de 10 metros… Camiões de roupa acumulam-se em algumas aldeias mas, não havia como a escoar: todas as casas tinham ardido e não havia como guardar essa roupa.
Passaram-se meses, fios elétricos e dos telefones ainda nas bermas das estradas, o negro sem ser suplantado pelo verde e sem melhorias na prevenção ou replantações. A seca e o fogo ganhavam.
Em 2019, prevalece o desanimo no que diz respeito a replantações, frequentemente raras e o eucalipto cresce muitas vezes controlo. Sente-se que é necessária substituição de eucalipto por outras espécies…
Este fogo gigantesco de 15 de Outubro, criou uma mancha continua ardida desde a Figueira da Foz até Pedrógão, dizimado pelo de 17 de Junho de 2017. O Pinhal de Leiria foi uma das áreas destruídas junto ao mar. Recentemente, fiquei a saber que a replantação estava a fracassar em parte ou com grandes dificuldades em vingar. Pergunto, se me permitem: não seria melhor semear as árvores do que plantar, pois o crescimento gradual iria permitir uma “gestão” da água mais eficaz pela planta? Ou seja, a raiz estaria sempre desenvolvida o suficiente para, em circunstâncias normais, suportar aquele ser vivo. Acredito que D. Diniz tenha utilizado esta técnica, afinal promove uma utilização mais eficiente de recursos materiais e humanos…
Não podemos esquecer as lições a retirar destas situações, as árvores salvas, o suor. Não podemos esquecer as vidas perdidas.