Alguns poemas em tempos de tempestade
CURSO D’ÁGUA, por Elizete C. (Brasil)
O lugar onde cresci
Era um lugar sem mar
E sem verde para olhar.
Havia a luz dos vaga-lumes,
Pardais malabaristas,
E três rios (um ao lado do outro)
Com nomes de peixe, na língua tupi.
As moças ribeirinhas
Banhavam-se nos rios da minha infância.
Os rios seguiam o curso d’água sem pressa,
Ajustando-se com simplicidade
A pobreza do lugar.
O sol iluminava as ruas sem calçadas,
E a lua no espelho das águas dos rios
Era a beleza que faltava mirar.
Eu pisei o barro da terra em cores.
Eu molhei meus pés nas águas enchentes.
Mas não conheci as águas dos rios
Que me encharcam a alma
De uma saudade água nascente.
Amorosidade, por Vera A. (Brasil)
A Nina é uma cachorrinha que adotei há muitos anos. O antigo dono a havia abandonado, trancada num quintal de muros altos. Só não morreu graças ao senhorio da casa, que estranhou não receber os aluguéis, foi até lá e encontrou tudo fechado. Colocou a cadelinha na calçada e foi embora. Soube do fato por uma vizinha e resolvi adotá-la.
No início, Nina era muito assustada, mas aos poucos, sentindo-se acolhida, passou a confiar em nós e virou nossa mascote. Meu marido a enche de mimos e faz coceirinhas nas orelhas, que ela adora.
Com o tempo, foi se acostumando aos nossos rituais familiares — quase sempre acrescentando alguma particularidade sua. Aprendeu o que significa “almoçar” e “nanar”, sabe quem é o pai e quem é a mãe, e até percebe quando estou triste. Nessas horas, encosta-se em mim e me enche de lambeijocas, como se dissesse: “coragem, vai passar.”
Atendendo aos apelos do meu cardiologista para que eu fizesse exercícios, vesti um velho e confortável legging, uma camiseta folgada e me sentei para calçar as meias e os tênis. Imediatamente, Nina pulou ao meu lado — tenho certeza de que, se pudesse, buscaria sua coleira! Desde o dia em que a levei comigo para caminhar, basta que eu calce os tênis para que ela se anime toda, antevendo a hora do passeio.
É curioso como os cães entendem mais de natureza humana do que muitos humanos. Nina não me cobra palavras, não exige explicações; basta estar comigo. Durante a caminhada, me olha como quem dissesse: “viver é simples: só precisamos estar juntos e caminhar lado a lado.”
Foi então que me peguei pensando na expressão “natureza humana”. Somos feitos de sentimentos — alegria, esperança, tristeza, carinho — e também das nossas ações: o gesto de oferecer atenção, o esforço de prosseguir, o simples ato de nadar, correr, cantar… ou até regar uma planta. Lembrei-me de minha mãe, que mesmo em tempos difíceis nunca deixava de cuidar das flores do quintal. Talvez fosse o modo dela de acreditar que a vida, apesar das dores, sempre encontra um jeito de florescer.
A amizade, também, é um ramo dessa árvore. Assim como o amor. Lembrei do meu primo Cleto, apenas um mês mais novo do que eu, meu inseparável companheiro de travessuras. Sou filha única; sem a presença dele, minha infância não teria o mesmo encanto. Com quem eu iria pescar girinos? Quem inventaria máquinas de passar filmes, feitas de papelão e palitos? Quem me ensinaria a fazer um canhão de mamonas? E os amigos da escola, então — quanta cumplicidade!
Mais tarde, recordei os bailinhos da juventude, as risadas divididas, os namoricos que vinham e iam como estações. Cada amizade, cada amor, era como uma planta regada: algumas florescem e ficam, outras secam e deixam apenas a lembrança da sombra que um dia nos acolheu.
Nina latiu, tirando-me do devaneio. Percebi que ela havia parado diante de uma árvore enorme, de tronco grosso, que parecia guardar segredos de gerações. Acariciei seu pelo e, naquele instante, compreendi: a natureza — humana e não humana — se encontra sempre no mesmo lugar: no gesto de estar junto, no cuidado silencioso, no amor sem alarde.
Talvez seja essa a missão da vida: aprender com a natureza a seguir em frente, mesmo quando a folha cai, mesmo quando a chuva atrasa a florada. Seguir em frente, mas juntos — nós, os humanos com nossas emoções complicadas, e eles, os cães, simples e inteiros, lembrando-nos de que a felicidade pode estar em algo tão singelo quanto dividir uma caminhada.
Filhos da Terra, por Cláudio M. (Portugal)
A natureza não nos pertence:
somos apenas sopro no seu coração antigo.
O lince ensina-nos silêncio e resistência,
a pétala, ternura e renascimento.
Entre rios rebeldes e raízes que abraçam,
vemos espelhos do nosso próprio ser.
E se um dia aceitarmos ser filhos,
e não donos,
a terra voltará a chamar-nos
pelo nome verdadeiro.
Raízes Espelhadas na Natureza, por Rita C. (Brasil)
Era uma manhã úmida e ao som que vinha da natureza, Clara caminhava pelo bosque como quem buscava respostas que ainda não havia encontrado nos livros. A cada passo, observava as árvores, ali firmes e altivas, que pareciam imponentes diante dela. Aquelas árvores tinham uma energia de anciãs, eram como velhas sábias ou guardiãs de segredos que somente através de uma profunda conexão seria possível decifrar. Ela sentiu que cada raiz presa à terra mostrava para si, o reflexo de suas raízes invisíveis entrelaçadas em emoções, sentimentos e sensações.
Enquanto adentrava pelo bosque, a cada olhar uma nova descoberta surgia... Observando o curso do riacho, ela percebeu o que antes não havia dado atenção - a água seguia adiante sem resistir às pedras, ela apenas as contornava. Clara pensou em quantas vezes havia se ferido, por tentar enfrentar o intransponível, em vez de fluir como a correnteza. Através do som do vento que agitava as copas das árvores, reconheceu seus próprios sentimentos... Que em alguns momentos eram como suaves brisas de afeto, já em outros, eram como tempestades que vinham para lhe arrancar à calma tirando-a do chão.
Foi então que Clara entendeu que a natureza não apenas existia, mas também nos ensinava a existir! O ciclo das estações refletia o movimento de sua alma. Eram primaveras de entusiasmo, os verões de intensidade, outonos de desapego e invernos de recolhimento. Tudo começou a fazer mais sentido, assim como na própria natureza faz... A natureza estava ali o tempo todo disponível, lhe mostrando que ela também precisaria se renovar a cada novo ciclo, para que pudesse desta forma florescer novamente.
Com este despertar de consciência, Clara ajoelhou-se sobre o solo úmido e tocou a terra em reverência a sua importância e magnitude. Sentiu que se conectar com a mãe natureza, era também um ato de cuidar de si própria. Sua percepção se estendeu a um olhar diferente para o real equilíbrio humano... Sua nova consciência lhe mostrava que o equilíbrio não estava em querer dominar ou controlar o mundo, mas em se reconhecer como parte dele. Assim, erguendo-se do chão, elevando seu olhar para o céu, ela viu na delicadeza das nuvens a promessa de um novo tempo... Um tempo que anuncia um convite magistral para que não só ela, mas toda a humanidade possa enfim aprender a viver em harmonia com a natureza e seus mistérios, que representam o coração da Terra.
O gato do stand, de Gil S. (Portugal)
À porta de um stand de automóveis vive um gato.
Um gato rabino, que gosta de lamber os pés de todos aqueles que
não lhe fazem carinho.
Ele sabe onde conseguir comida. Ou no café do outro lado da rua ou
na casa de uma velha com verrugas que vive no andar de cima de
um pequeno prédio cinzento separado por uma casa do stand de
automóveis.
Um dia, o gato, na sua normal ida ao café em busca de comida,
atravessa a rua. Porém, e como não é humano e não sabe olhar
para um lado e para o outro quando vai atravessar a estrada, não
se apercebe que vem um camião cheio de gasolina para ir
abastecer um posto que ali ficava perto.
Esse camião, que era alto em relação à estrada, o que não permitiu
o condutor ver o gato, vinha rápido de mais para a zona em que se
encontrava naquele momento.
De um instante para o outro, ouve-se um barulho estranho e
agonizante.
O camião pisou e esmagou o gato, deixando-o espalmado no chão
num relevo de três milímetros. O camião não parou, já que o
condutor nem se apercebeu do sucedido.
Todos os anos, naquele dia, um estranho cheiro a gasolina sente
se fortemente naquela rua e o gato fica com um tom mais
acinzentado.
O gato espalmando ainda lá esta, com uma cara de aflição não
sentida. Nunca ninguém o conseguiu dali tirar. Quase que se pode
dizer que o gato é também estrada.
Concursos a decorrer:
Está também a decorrer a Festa do Livro em Belém:
Festa do Livro em Belém 2025 - Tudo o que precisa de saber - APEL
Até breve.