Neste blog são apresentados conteúdos literários. Para qualquer assunto podem contactar o autor via ruiprcar@gmail.com. Aceitam-se contributos de outros autores, de 4 a 24 de cada mês, relativos ao tema Natureza ou Universo :-)
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Fevereiro começa hoje... talvez o melhor seja vermos algumas fotografias “de alegria” em Dezembro, em Lisboa.
Com a naturalidade com que uma águia-de-bonelli caça durante o dia ou uma coruja-das-torres durante a noite, assim chega ao fim o Concurso Literário Natureza 2017-2018! Ainda em Fevereiro contamos divulgar os resultados das categorias poesia e conto.
Antes de lermos um poema por António do C., ainda antes de lermos um conto vencedor de 2017, e ainda antes de ler a Revisão crítica de “Adágios” por José Vieira, ou ouvir dois programas “O Amor é”, por Inês Meneses e Professor Júlio Machado Vaz, e finalmente ainda antes de ler “Esperança em pedaços (2)” por Rui M., do livro “Pedaços de esperança” a editar em 2018, convém-nos refletir sobre a ligação “perigosa” entre literatura, natureza e arte.
Por exemplo, o quadro “A Primavera”, por Sandro Botticelli (1444 ou 1445 - 1510), nascido em Florença, cidade berço do Renascimento Italiano. Sem querer olhar com um detalhe exaustivo para esta obra, será de enfatizar a existência da figura da Deusa Flora, Deusa floral, com o seu vestido florido e recebe como dote um jardim fecundo, com floração abundante. Vénus, a Deusa do amor, surge como elemento apaziguador da natureza, por vezes, rigorosa, do amor. E cometendo a “traição à obra” de por simplicidade de análise esquecer todos os seus outros elementos, fica ainda a observação da existência de uma profusão de flores que para alguns botânicos é um notável efeito pictórico... com laranjeiras, acianos, miosótis, cravos, etc. Finalizando, esta pintura possui também uma dimensão de mudança, que surge associada à própria identidade da natureza, e é envolta em mistério. Afinal, quais as mudanças a que se aludem na pintura?! A obra tem uma dimensão mística, naturalística e literária, dado que o próprio pintor assumiu influências poéticas nas suas obras, sem exceção. Algo é certo, as muitas poesias recebidas ao longo do nosso Concurso Literário ligam natureza a humanidade mas também ao desejo mutante da natureza. Fica, por agora, o convite a continuação de boas leituras e contributos para uma natureza mais conservada e respeitada.
Por António do C. em 14/01/2018
Deram-me uma fotografia
Como no título do livro de Paula Hawkins, estava escrito na água, que esta fotografia seria minha: luz em redomas de vidro, cercadas pela escuridão, aprisionadas por ela, irmãs de um mesmo meio de dispersão que nos solta espetros de contraluz.
Tão simples, tão redondas, como as flores de um jardim: como o Jardim da Estrela, tudo cheio de uma cor, e tudo tão sem festa sem ilusão ou necessidade de perdão
Serenidade é esta fotografia. Como se eu fosse um miúdo, de novo, e me sentisse em paz com o mundo. A bênção da infância é crer que basta crer, que ele nos deixa fazer tudo e sermos essa única ilusão. Verdadeiro refúgio.
Um dos contos vencedores em 2017
4º Lugar
CHUVA NO DESERTO, por Alberto Arecchi, Itália
Está chovendo. Chove no deserto do Saara.
Com certeza, não se trata da nossa "chuva de março", nem do tempo triste do outono.
Na noite passada, vimos umas grandes nuvens negras engrossando para oeste, um pouco acima do maciço de Adrar, a antiga montanha sagrada que se levanta no meio do deserto. Depois do pôr do sol, a escuridão do céu estrelado foi subitamente atingida por raios, a partir daquela mancha negra, sobre a montanha distante. Nosso guia perscrutou o horizonte e nos mandou deslocar o campo para uma posição mais elevada. Geralmente arranjamos o campo em alguma depressão, abrigada dos ventos. Ontem à noite, porém, fomos para um morro bastante alto, fora do vale do rio, a salvo de súbitas inundações.
Parece paradoxal falar de cheias aqui, a frente do leito de um rio seco como uma esponja espremida, depois de quarenta dias de seca absoluta, sob o céu claro, sem que a gente veja uma única gota de água. No entanto, cerca das cinco horas da manhã, acordou-nos um ruído distante, que logo se tornava um rugido maçador. Um fenômeno bastante preocupante, que parecia aproximar-se. Crescidos com os filmes de cowboys, tínhamos a impressão de uma manada de bisões galopando em volta da nossa posição.
Vinte minutos depois, precedida por uma frente de ar muito frio, no álveo do rio chega uma montanha de água preta, com uma altura de cinco metros e a velocidade de um trem. O leito do riacho enche-se rapidamente. Se tivéssemos acampado lá, estaríamos reduzidos a escombros e arrastados até alguns quilômetros mais adiante, juntamente com as pedras que rolam no fundo, levadas pela cheia. Nossa sorte foi nos encontrar a uma pequena distância dos montes e da nuvem negra, e podermos assim nos tornar conscientes da chuva iminente. Cinquenta quilômetros mais adiante, a cheia iria chegar e atingir as caravanas sem nenhum aviso de alarme.
Ficamos atordoados, enquanto nosso guia se apressa para pegar as barracas, e cravar tudo o que possa ser arrastado pelo vento, e grita para nos colocar em lugares protegidos. Na verdade, após a onda de água suja da cheia - quase imediatamente - está chegando uma violenta tempestade de vento, com poeira grossa e com as primeiras rabanadas de chuva. É como se alguém estivesse lançando, em ondas repetidas, uma enorme quantidade de areia, terra e pequenas pedras afiadas, tudo misturado com água. Estamos fechados nos caminhões, mas nenhuma vedação poderia guardar-nos dos salpicos de água e terra, que penetram no interior. Pelas janelas não podemos ver além de poucos metros, nem perceber se - por acaso - escorregarmos no fundo do rio, tirados pela força da água. Somente os choques do forte vento, que balançam os meios de transporte, confortam-nos a não ser debaixo da água e ainda termos as rodas apoiadas no chão, e tranquilizam-nos por não ser sido arrastados pela força da água.
Na escuridão total, jogados como um trem desgovernado, em uma tempestade de poeira de carvão molhado. O ar é irrespirável, saturado de umidade. Um pesadelo de quarenta minutos.
Rápida e súbita, como quando ela chegou, a chuva vai acabar. A luz aparece timidamente entre os vapores emanados a partir do solo molhado, cheio de poças.
A tempo para ver o nascimento de um grande arco-íris para o leste, em torno dos primeiros raios do sol que perfuram as nuvens.
Abaixo de nós, no leito do rio, a água parou a formar uma barreira, que nos impede qualquer passagem.
Ao nosso redor, o deserto enche-se rapidamente, animando-se como o passeio do sábado. Enxames de insetos voam no ar e concentram-se sobre as poças, moscas, mosquitos, efemerópteros com asas iridescentes. Besouros de cores vivas emergem do solo. Reconheço um inseto vermelhão, que aqui é chamado “o anjo da chuva”: claro que não podia faltar. Lagartos e sapos pequenos aparecem do nada, e com eles uma infinidade de pássaros. Afinal, há até alguns mamíferos que chegam para beber. Uma pequena gazela tenta pegar uma bebida, mantendo sua distância de nós. Um fenech (raposa do deserto) ousa em vez mais e se aproxima de nossas provisões, em busca de comida. Antes da tarde, os horizontes distantes aparecem como pastagens. Não é uma miragem, mas o resultado da revitalização de sementes que estavam na terra, esperando umas gotas de água - talvez por anos. É como se a terra tivesse aberto seu ventre, para desencadear uma segunda criação. Aqui no deserto a gente percebe e entende todo o esplendor e a energia total dos elementos primordiais: fogo, terra, ar, água. A água é o elemento final, em que tudo acaba e tudo renasce com um novo ciclo de vida.
Decidimos ficar por alguns dias neste pequeno oásis improvisado. O recomeço da nossa viagem, agora, entre as rochas e as areias molhadas, poderia ser muito perigoso, porque correríamos o risco de afundar com as rodas na lama. Mas - o que é mais importante - não queremos perder esta alegria primordial, a maravilha de sentir-nos no início da criação, para ver o nascimento e a primavera da vida, onde havia primeiro o Saara, o ‘grande nada’.
O sol desce no horizonte, nem sequer vê-se uma nuvem. Um escorpião captura a sua presa, uma pequena rã, já paralisada pelo veneno da sua cauda. Um grande lagarto de cabeça amarela assiste à cena e balança a cabeça, como um ser humano continuando a negar a evidência. O fenech decide ir-se embora: ele sabe que o lagarto se deu conta da sua presença, e sabe que é mais ágil do que ele. Hoje terá que encontrar outro jantar.
Nosso guia alarga o tapete para a oração do pôr do sol e se inclina em direção ao leste, onde o céu escurece rapidamente. Movimentos antigos, no seio de uma natureza em que acabaram de repetir-se os eternos rituais de nascimento, vida e morte. Sentimo-nos como folhas leves, transportadas neste cenário por uma nuvem passageira e um sopro de brisa.
Chegou a noite, outro dia passou. Brincamos como crianças, olhando com binóculos e lentes de telefoto para todas as espécies de plantas e animais que apareciam, para fixar a memória daquele fenômeno raro. O deserto agora vive e é como se todos os seres que nele habitam surgissem de um jogo de armário, e cada um vai, para ocupar seu lugar, num espetáculo teatral. Mas sabemos que amanhã será outro dia, acordaremos e nos encontraremos no deserto de sempre, murcho e seco.
Revisão crítica de “Adágios” por José Vieira 21 Julho 2017
“Adágios” (2017) é o terceiro livro publicado por José Vieira, pseudónimo da autora Teresa Vieira Lobo, nascida na década de 80 do século passado em Gaula . Esta obra surge após o amadurecimento literário proporcionado pelo primeiro livro “Estranhas Coincidências”, publicado em 2014, e pouco depois, em 2016, com o romance “Dedicação, Palavra e Honra”. Alguns contos publicados na revista literária “Submersa” e na plataforma “Quem conta um conto”, somam-se a esta atividade literária laboriosa. “Adágio significa provérbio popular com mensagens de teor moral, ditado. Assim, considerando apenas o título “Adágios”, poderíamos supor que no interior deste livro iríamos encontrar uma coletânea de ditados, todavia, tal não é verdade pois, encontram-se 5 contos autónomos, todos eles, é certo, com mensagens morais explícitas com diversa gradação na forma como nos surgem. Em prosa cativante, em ritmo marcado pela ação e emoção, surgem diante de nós as vidas, realistas, de cinco mulheres que procuram o melhor para si, e para os seus, em contextos frequentemente tormentosos mas também frequentemente felizes, muitas vezes em simultâneo, sem dúvida que a par e passo; em relato de luta entre o bem e o mal. Na contracapa diz-se que “Adágios é um livro de vidas. De mulheres. De luta. Um dia foram elas... Amanhã seremos nós.” Convém olhar com algum cuidado esta sequência afirmativa. As vidas são, sem dúvida, o núcleo central deste trabalho, são elas que lhe dão corpo. São-no na perspetiva das mulheres, o que adiciona detalhes comoventes e familiares ou mesmo de “amor quase maternal”, como às páginas tantas se menciona, de tal forma que, quando em certo momento se fala de “essência”, já compreendemos, antecipadamente, o que se pretende referir ou pelo menos isso assumimos, dada a profundidade de alguns dos conflitos éticos com que se deparam as personagens. Quero todavia acreditar que vários destes elementos dramáticos seriam parte destas histórias caso se de homens se tratasse... A luta ética é algo que pode dizer muito a todo o ser humano e é de seres humanos que versam estas páginas, sensíveis e cativantes. Todavia, não se concorda com a afirmação que remete para amanhã esta luta, pois por vezes podemos esquecer mas ela nos envolve a cada momento e em cada ação pois somos seres dotados de livre arbítrio. Em resumo, a leitura de “Adágios” leva-nos longe, quem sabe a olhar “por dentro” a natureza humana. A certa altura com um prisma religioso e em outros tantos momentos tão só pelo sentir que, de facto, nos transmite. Se assumirmos que a literatura proporciona mudança ou alicerces a quem dela frui, este livro pode ser entendido como um bom caso de “literatura de catarse”. São páginas que valem a pena ser lidas.
Referência da obra:
Vieira, J. (2017), “Adágios”, Chiado Editora, Lisboa, pp. 97
Este mês apresentamos dois programas “O Amor é”, de Inês Meneses e o Professor Júlio Machado Vaz, com sua autorização. É com grande satisfação que os partilhamos. O primeiro dos programas que partilhamos é o “O Amor é (Fim de Semana) - Eugénio de Andrade e os amigos. | 27 Jan, 2018”. Eugénio de Andrade, a sua escrita, poesia, é o foco de uma conversa que nos procura elucidar um pouco mais acerca dos meandros do amor. A natureza humana é aqui observada pelo prisma, fascinante, da amizade. Igualmente se fala da vida do escritor, e de uma forma um pouco mais abrangente das vidas dos escritores, bem como com a possibilidade da sua escrita ser o reflexo dessas vidas ou não ser necessariamente assim. A escrita pode não refletir mesmo a vida do escritor. O melhor é mesmo ouvirmos este programa que nos permite vaguear também pela vida literária.
O segundo programa que aqui se partilha é o “O Amor é (Fim de Semana) Pedrogão - dar a volta. | 30 Dez, 2017”. Como o próprio nome nos revela, tem um tema também ligado ao ambiente, tanto quanto a tragédia dos fogos florestais em Portugal nos permite, por fatalidade, admitir. A abordagem é a da psicologia, ou será antes, poderemos dizer, a estrita visão humanista desta situação, ainda associada à mudança de ano, e a tentativa de nos libertarmos de fantasmas, ou por outras palavras, nos vermos livres de situações adversas nas nossas vidas. Pedrógão é o exemplo aqui sublinhado e o efeito, positivo, da solidariedade gerada nas e pelas pessoas. As famílias humanas são claramente uma realidade profundamente ligada à natureza. Nós somos a natureza. Fica o convite, a ouvirem este programa que nos elucida sobre uma ou várias vertentes das nossas vidas. Quem sabe nos poderemos tornar melhores pessoas, que apoiem a natureza, mas também melhores escritores?