Neste blog são apresentados conteúdos literários. Para qualquer assunto podem contactar o autor via ruiprcar@gmail.com. Aceitam-se contributos de outros autores, de 4 a 24 de cada mês, relativos ao tema Natureza ou Universo :-)
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Já lá vão uns tempos desde que surgiram no blog dois primeiros capítulos de um conto a ser escrito a pouco e pouco. Ainda sem título. Um possível primeiro título poderá ser: Num dia que é nosso.
Capítulo III
Aquele caminho revelou-se também ser o destino, o que quer que isso seja, e talvez não seja mesmo nada, apenas uma imaginação nossa, um fruto imaginário na Praça da Alegria em Lisboa que resvalasse pelo declive daquela rua até à Avenida da Liberdade e fosse ao nosso encontro, sem que nada pudéssemos fazer além de aceitar esse facto e de ficar ali a ouvir uma música a vir do bar ali ao lado, também ela sem permissão para nos abordar mas ainda assim a gostarmos de a ter connosco. Será aquele caminho uma coleção de destinos, será mais correto afirmar, e ali no Largo do Camões dei uns passos mas estava preso lá atrás, ali naquela rua a descer até ao rio e na Rua do Alecrim, nos estuques com formas de instrumentos musicais, a música novamente a assolar-me, na luz de Verão ali única como uma visão de uma montanha imponente e tão bela que nos preenche até onde não sabermos compreender e depois aquela inclinação a caminho de um céu cor de melão amadurecido e emoldurado com buganvílias rosa violeta que cativam as nossas retinas, embrulhando aqueles edifícios antigos e quiméricos, com varandas de pedra branca, sólida como o tempo ao qual estes e elas sobreviveram. O branco daquele frio feito de rocha ali a dar um toque de Outono frio a um calor humano em digressão pelos dias sem nexo. Esta Rua do Alecrim fazia-me sentir, em qualquer momento do ano, o calor ondulante das asas de andorinha a voar e isto tudo ao mesmo tempo que o seu piar criava, sempre, uma nova Primavera a cada momento daquele alegre movimento. E ainda faz. E ali se materializava o amor maternal da natureza, sempre desventrada para nos acolher, nos alimentar de sonhos e crescimentos sem fim e sem extinção de uma qualquer força adolescente. Sons de outrora de músicas, novamente, a sair por portadas de janelas a aconchegar os nossos peitos, estimulando os nossos tímpanos, cuja existência julgávamos ser apenas um detalhe de um qualquer livro de anatomia escrito para nos ocupar os melhores tempos das nossas vidas. Fugas ao final do dia, calor de um scate ou um carrinho de rolamentos debaixo dos nossos pés, um braço raspado na terra, e pedras que em nós se espetam durante uma queda, e estrelas, sempre elas, que nos mandam para casa, como nossas tutoras da vida………………………. Sem fim a sua luminosidade, tal qual o nosso sentir, sempre maior que o tempo durante o qual o temos como parte de nós, nosso sangue e ser, sempre enorme, sempre mais vivo que aquele alecrim a que alude o nome desta rua. Constantemente verde como a planta cujo nome é homónimo do daquela rua. Nossa. Minha. Tua. Ah! Meu amor, os meus olhos não choram por ti, como na canção do alecrim, mas choram por esta rua sempre cheia dos tais estuques de música e horizontes de verões sem fim, de cores mais quentes que o sangue nas minhas veias e pouco menos vermelho que uma rosa recém brotada. O Jardim da Estrela ficava bem lá à frente, como uma quimera que se vai formando com o tempo na nossa mente a partir de alicerces feitos de minúsculos pedaços de memórias que perduraram, tais como bocadinhos de cerâmica entre uma qualquer ruína antiga. Imaginava-o agora como uma via láctea cujas estrelas eram árvores, os ramos, caminhos desenhados em mapas de luz, entre reflexos neles, e nebulosas de poeira tais quais matérias-primas para os anéis de Saturno, misturados com gelo, talvez o frio daquele dia congelasse não apenas o universo das minhas esperanças, mas também exatamente a água daquele céu feito de lembranças. Nada mais selvagem e livre que as memórias do passado, que nos tomam de assalto sem aviso prévio, sem nos deixarem responder e ficamos imobilizados até que o vento, tal qual testemunho do vácuo universal, nos leve para outra constelação e outros céus feitos de luz e paz. E de tantos instantes esperar ali os meus olhos desenhavam uma ilusão de maior proximidade, lá ao fundo era a minha casa, onde aqueles braços vegetais sempre me abraçavam e apoiavam ainda que eu, traidor involuntário, os esquecesse por longos períodos, de tempos imprevistos. Mas sim para elas o tempo é o do universo, de uma vastidão que o meu nunca alcançará…………….. Não lhes seria tão penoso esperar. Eu estava ali sozinho naquele dia e aqueles sons cercados por silêncio humano. A proximidade era feita de cheiro que o tal vento me trazia gélida e suavemente, ainda não era o odor a erva a crescer ainda verde e viçosa, mas, este tão só sinalizava uma humidade que parecia vir de uma lenha exposta ao frio, cortada por alguém que carinhosamente a preparara para alguém indefeso. Sentia-as, as estrelas digo, à distância como se lentamente o próprio local me iludisse com um falso sentimento de familiaridade, porque ainda não estava lá sendo como se estivesse……. Era verdade era já vizinho da fronteira daquela terra à qual eu pertencia e isso bastava-me. Mas ainda faltava caminho a percorrer para ver aquele local único. Eu descia aquela estrada, para mim sem nome, e os meus olhos cruzavam-se com os de uma senhora de idade avançada que a partir de uma janela me fitava quase como um ser de outro planeta. Acenara-me e sorrira-me, eu parei e respondi. As ruas estavam desertas, o vento tudo enchia, e ela de cabelos brancos atrás do vidro, não tinha o cabelo a ondular como sucedia com o meu. Eu era aquela pessoa que estava ali mas que na realidade deveria não estar por causa da pandemia... Mas isso não interessava a ninguém, à minha pessoa certamente que não e o meu olhar descansava finalmente em olhos maternais, plenos de vida e de sabedoria; sem troca de palavras, sem redação cuidada, sem uma palavra dita, sem que as portadas se abrissem, sem que tudo isto fizesse falta para nos dizermos um ao outro: como foi bom ver-te hoje, aqui e agora, neste momento só de vento, só de frio, só de sons naturais e urbanos, só de: de estarmos a sós. Foi tão bom. Sorri de novo e fui por ali abaixo. Debaixo dos meus pés gerava-se um som quase como o gelo de inverno em estrada de terra batida, era quase como se cristais se partissem à minha passagem, e afinal era areia, afinal ia feliz ainda que sentisse que aquele olhar verdadeiro e integro poderia jamais voltar a cruzar-se com o meu… mas havia-se cruzado. E fui. Até que a estrada larga, que eu procurava, ficou à minha frente, ornamental e longa como qualquer coisa pura e natural que eu tinha dentro de mim. Tão bom...
Bom dia, apresenta-se de seguida o Capítulo II do conto ainda sem nome.
Capítulo II
Abandonei o Parque Eduardo VII meio atarantado, ou melhor, totalmente atarantado, porque já conseguia imaginar as flores de jacarandá que inundariam de violeta e perfume aquele espaço e depois me levariam, tal qual em hipnose, até Julho e Agosto, meses em que o calor transformaria tudo por ali em algo sobrenatural pois o meu corpo parece então levitar como se perdesse a sua essência de matéria. Talvez isso se chame encantamento, encanto, sonhar acordado ou sentir a eternidade. Todo este sentir inundou-me e caminhei pela Avenida da Liberdade abaixo sem me libertar deste estado de alma.
As plantas nos canteiros reverdeciam naquele silêncio e leve brisa que se ouvia naquele local, quase fantasmagoricamente, quase além do que eu poderia julgar possível sentir. Algumas folhas mais arredondadas pareciam recortar o espaço em seu redor, de uma forma tão completa que eu olhava ainda melhor, até ver um breve recorte ao longo dos seus limites, umas nervuras no meio delas e assim naqueles detalhes seguia caminho. Os pequenos lagos de pedra com águas azul-cinza e reflexos do céu entre as copas das árvores, sobretudo plátanos, emanavam beleza, aos meus olhos. As pequenas estátuas, com a sua silhueta humana, davam um pouco de normalidade aquele espaço. E eu continuava a andar, sempre ao mesmo ritmo, sempre decidido.
A Rua dos Fanqueiros chamava-me como uma praia a um veraneante que sente saudade do mar azul, após um ano de ausência. Talvez seja por causa de saber que Cesário Verde andou por ali a fazer poemas nos intervalos da sua vida, mas ainda assim tornando esses intervalos tão grandes (ou tão intensos) quanto todos os outros momentos que viveu. Terá sido um acaso ou não, mas ele sempre foi recordado pelos intervalos e não pelas grandes partes do seu tempo e não se sabe como ao chegar a outro poeta, Fernando Pessoa, acabou por se levar mais longe, ou melhor, levar mais longe o que fez enquanto a pele que assumiu. E assim, entre estes factos e aquela paisagem urbana, comecei a ficar menos consciente do tempo despendido a olhar tudo em redor, sem mais preocupações. Os azulejos, sempre em padrões diferentes, pareceram-se ser como quadros num museu, feitos para serem vistos ali e num determinado contexto, e no seu todo serem ainda assim algo mais. Não. Pareceram-me ser olhos do passado que me espiavam enquanto o meu caminho se colocava à minha frente tal qual uma qualquer vereda de um bosque, exatamente com o mesmo nível de ruído daquele local… O piar de um pombo acordou-me ou concentrou-me nestes pensamentos, que importa, se ali havia a liberdade de então acreditar no que quer que fosse. Eu era um seu irmão daquele dia, uma pedra que teimava em andar em ser um símbolo do incompreensível, só que ninguém estranhava, afinal nenhum daqueles instantes seriam uma realidade previsível há poucos meses atrás, afinal a humanidade ou o mundo não haviam mudado nada, apenas haviam vestido outras roupas… Nada de significativo aos olhos daquelas aves era diferente e por isso elas se comportavam como há centenas de anos atrás. Mãe natureza porque não me segredaste ao ouvido este dia sem igual?!
Perdi-me por ali, entre aquelas ruas que mais pareciam ser uma só entidade, de tão irmãs se afigurarem ser, e talvez por isso o meu espanto tivesse sido maior quando parei junto de uma montra de Alfarrabista e Livreiro, ali naquela rua que parecia tão igual às demais, sem gente, sem máscaras, sem o caminhar sobre as calçadas, sem sons humanos, onde se respirava medo sem sentido, enigmas de morte. Arrepios de vida e luz. A disposição dos livros expostos fazia lembrar uma constelação de estrelas que brilhavam sem sessar a uma cadência muito suave, meiga, tal qual a esperança de normalidade que simbolizavam dentro de mim; afinal eles estavam onde estariam mesmo sem este vírus anómalo que havia criado para nós esta variante de vida, circunscrita por temor. E, todavia, não me queria vacinar contra esta esperança de respiração quente e húmida, ali plantada naquele horizonte de vidro, sílica roubada ao pó milenar.
Nada detinha o meu olhar sempre a procurar o que o coração não queria ver ou não julgava ser visível. Ali no campo superior direito, reluzente, uma luzinha brilhava refletida sobre o vidro entre mim e um livro, como se ele, pendurado num fio translúcido fosse uma estrela ali parada que eu podia ver de um lado e quase do outro, com as suas cores a mudarem… um pouco mais amarelo, um pouco mais laranja, um pouco mais de uma tonalidade e ali lia o título em letras maiúsculas claras sobre o fundo mais escuro. Além, um pouco a meio, surgia outro livro um pouco mais rosa e também brilhante, porque a sua capa era suposta refletir a luz. Cada um deles uma história e um empenho de alguém que se sentou um dia a escrever algo que lhe parecia fazer sentido existir. Duvido que algum deles tenha simplesmente existido e não tenha sido algo mais que uma confissão dessa sucessão de factos, cada um deles deve ter transformado a vida de alguém e terá transformado algo físico algo que ninguém imagina. Há um segredo em cada história que se conta e este pode ser consciente para o contador ou contadora ou não o ser de todo, talvez ninguém saiba que ele existe ali, mas estou convencido que sim. Mistério. O mistério das páginas de um livro que se abre é sempre o mesmo que o contido nos dias de uma vida, gémeos, pedaços da mesma realidade na qual queremos como se um malmequer se tratasse… E entre aqueles blocos de papel, tais quais bolos mil-folhas, a absorção de luz que criava aquela escuridão profunda digna de um universo infinito, do tamanho dos nossos sonhos, estendia a sua mão e eu seguia-a, cego de tudo aquilo em meu redor, naqueles olhos de ausência de luz, sentia um amor de letras e veludo, tudo ali era um eco de sonar vinda a Primavera que haveria de vir.
E talvez mesmo exista um segredo em cada Alfarrabista, porque afinal se não houvesse esse sentimento profundo por explicar, porque existiria esse alguém a vender, a perpetuar, livros que estariam esquecidos e dados como mortos. Talvez o segredo seja o amor de alguém. Amor pelo livro, pela história, pelo momento, e até pelo segredo que nos leva a procurar uma “chave” naquela história que ali ficou redigida. Há uma ligação, pensei e foi então que o São Pedro lançou umas gostas de chuva que me fizeram limpar o cabelo, a face e um pouco a montra com o cotovelo. Olhei para dentro com cuidado, pela escuridão. Não havia ninguém. Ninguém que eu conseguisse ver, afinal passado um pouco, ouvi o som agudo e estridente de uma ave, voltei-me para o céu, como reflexo e quando volto a encarar a montra, qual o meu espanto quanto vejo um minúsculo ponto de luz a mover-se, por poucos segundos, lá longe entre o breu profundo.
Pequenas formas pareciam estar entre aquele fundo negro, mas não separadas dele, como se nelas o cinza quase negro, suplantasse o negro total, ou como se um reflexo no limite do espectro do visível ali existisse e eu não me apercebesse. Sem dúvida, quem vai a Lisboa e não pode ver uma montra clássica como esta não conhecerá a verdadeira essência da cidade, aquela não é um pedaço de história recuperado para fins turísticos, provavelmente diferente do seu eu profundo original, apenas uma semelhança oficial, mas sim a própria história viva e trazida do passado para o presente, sem interrupções.
O passar breve do reflexo prateado do vulto de uma gaivota pelo vidro escurecido fez-me viajar ao passado próximo. Eu entrava naquela mesma loja de livros e olhava alguns livros sem sequer os tocar, quase com medo de os danificar, pela sua delicadeza imaginária. O cheiro a papel antigo, ali concentrado em grandes quantidades e bem como o mobiliário cor mogno e cerejeira, com contornos tão dignos de um museu quanto alguns dos livros, conferia uma áurea misteriosa que apenas me podia fazer sonhar imediatamente. Afinal, era como se o livro sobre o Robinson Crusoe estivesse enquadrado no tempo que o fez nascer… Não era apenas o livro que era antigo, era também a sua casa, o seu papel, o seu “respirar”. Se o manuseasse seria quase como se me intrometesse no seu tempo e, de se certa forma, estabelecesse uma afinidade com outra realidade, outra dimensão física. O simples facto de conceber a hipótese de o retirar dali seria e de saber que, entretanto, outros livros antigos ali chegariam, era como se aquele local fosse uma estação de viagens no tempo, sem fumos, tal qual a estação de um comboio elétrico.
No chão algumas silhuetas de pessoas em movimento no passeio e pós isso o meu olhar, a cruzar-se com elas além do vidro transparente. Som de sapatos na calçada branca portuguesa, misturada com o som dos automóveis em propagação distorcida pelo fumo de automóveis com motores diesel e outros, e o autocarro enorme, como um mostro, perseguido pelo elétrico solenemente nos seus carris, sempre leais ao seu espaço no meio da estrada.
Claro que durante aqueles dias, não sentia nada de especial em tudo aquilo, aquele tudo era mesmo o dia-à-dia, uma forma de estar que nós assumíamos como garantida. Mas, hoje, agora, neste instante sinto-me tão burro que nem sei descrever: não soube aproveitar toda aquela azáfama com tanto de positivo para conhecer e partilhar numa realidade sempre mais profícua que uma qualquer realidade 3D. Falha humana. Miopia. Sem me deter aquele mundo do tamanho de uma cidade sem proprietário poderia ter sido meu, das cores de trepadeiras primaveris, cheiros de bolos a fugir pelas portas de restaurantes cujas receitas desconhecia, a beber olhares do tamanho de oceanos, vidas do tamanho do turismo feito de alegria pela crença de um desconhecido sempre libertador, sempre digno de um respirar fundo, tão fundo que nos levaria a uma cratera submarina, entre as algas ondulantes em florestas aquáticas, tão irreais quanto esta minha descrição de um tempo perdido, que não fui capaz de ler. Perdoa-me tempo que deixei dependurado nas minhas recordações. A minha ignorância impedia-me de saber o que fazia.
Ao sair dali, fui em peregrinação para o Jardim da Estrela, em passo apressado de peregrino que sente ao longe o seu local de adoração e as figuras que lhe tocam o coração, neste caso as árvores com a sua altitude esquia e ramos a apontar para o céu. Mas, até lá chegar havia que descer aquela rua e depois subir aquela outra. Entre elas separação um calafrio de esperança e desvario, uma libertação que era doce e ácida, partilhando o espaço de um mesmo instante. Fuga, contemplação, cada árvore uma amiga e naquele jardim com nome de vida que persiste, nem um livro cumprido, apenas promessas de histórias.
Quase no início o Cinema Ideal, também fechado, e logo após, à esquerda, tive de olhar ao fundo porque ouvi ou não, não esperem que eu confirme o que não sei, a tal voz, vem, dizia-me e eu para onde, pensei. Parei senti um calafrio e desci até ao primeiro cruzamento um pouco mais abaixo. O rio pareceu mais próximo, e estava, mas a voz não e depois subi para regressar ao meu caminho, mas questionei-me por estar a dar sentido real a vozes imaginárias ainda que todo aquele percurso me fosse agradável, como se visitasse um amigo. Talvez esse amigo fosse aquele pó seco de inverno que se elevava lentamente pelo meu pé ter raspado naquele chão milenar. Ali havia mais movimento para além do meu.