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Contos das Estrelas

Neste blog são apresentados conteúdos literários. Para qualquer assunto podem contactar o autor via ruiprcar@gmail.com. Aceitam-se contributos de outros autores, de 4 a 24 de cada mês, relativos ao tema Natureza ou Universo :-)

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Uma sugestão para 2024 e Capítulo IV

por talesforlove, em 09.01.24

Com o novo ano, com uns gramas a mais devido à Época do Natal, eventualmente será uma boa sugestão, fazer alguns percursos a pé, se possível, substituindo a habitual utilização do automóvel.
Será uma boa opção para a saúde e para evitar emissões de dióxido de carbono.

Hoje, publica-se o 4º Capítulo de conto que tem vindo a ser aqui publicado por capítulos.

 

Capítulo IV

 

A estrada longa, tão longa quanto o infinito estelar, feito de estrelas que brilham como numa noite de verão, como numa noite de outono, como no inverno que dá lugar à primavera, fruto de flores e botões de rosa e cheiros e perfumes e craveiros, e outras flores com brácteas misteriosas com a força da persistência da natureza sempre naquele espaço, como o calor longínquo mas tão próximo destas candeias de luz que nos hipnotizam e nos alegram nas noites, sejam elas de paz ou de não tranquilidade, sejam elas de maresia ou de artes de florestas e sons de corujas, asas de morcegos e o seu bater em voos encantados.

Lisboa ali era mais que isto tudo. As pessoas naquele passado não longínquo eram um conjunto de boas recordações, a carestia de preocupações, os sorrisos mais ou menos enormes, e os olhos de felicidade ainda ecoavam dentro de mim como um impulso de boa disposição… As montras ao anoitecer com aquelas luzes suaves, uma magia que me tocava num calor tão particular que não o sei descrever. Aquela montra de rendas do passado ainda ali, em vésperas de ser desmontada para se tornar mais um café, com esplanada igual às que conhecia, e aquela outra montra com as cores das tintas na montra e lá dentro, o longo balcão em madeira, as cores em cilindros lá atrás, todas alinhadas e prontas a serem coladas “à vontade do artista”. Aquela cor da madeira, entre o pinho e a faia, uma cor apurada pelo tempo e aquelas pessoas que atendiam com um saber que “transbordava” daqueles olhares se sincera empatia e depois aquele embrulho de papel reciclado tão genuíno como o mais antigo dos retratos, que até nem seria o mais antigo mas o mais velho que eu tinha alguma vez visto e me fazia imaginar ali mesmo como teria sido possível e feito e por quem e para quem e onde e em que circunstâncias e em que momento e com que estado de alma e com que esperança e com que confiança ou com que inconstância. Mas estava ali e eu à sua frente, mesmo pelo breve instante da minha passagem por ali, apressada até ao dia em que parei e depois entrei para ver mais e quando dei por tudo, tudo lá fora se movia exceto eu ali exteriormente imóvel.

Ainda andei novamente e a recordação pegou-me pela sua mão até aquela festa do tamanho de uma sala de estar e que foi enorme no seu espírito festivaleiro, e se calhar, festivaleiro não seria bem talvez mais acolhedora e diferente. Eu lembro-me tão bem daquele bolo que ao andar a saliva me inundou a boca e olhei de relance para o presente à minha volta e senti uma nostalgia gastronómica mesmo, mesmo, forte. Que ilusão aquela daquele tempo, daqueles instantes que naquele passado eram mesmo irrecuperáveis. A luz saída da sala para a rua, tal como um suave cheiro, e antes mesmo de se ver o bolo já se adivinhava a animação das pessoas. Aquela esperança que até poderá nunca se vir a concretizar, mas que nos faz ser alguém mais pleno… sabem o que quero dizer?!

E era de noite sim. A luz escapava pela janela numa noite de verão. Em redor a escuridão era esbatida pelas luzes brancas dos candeeiros públicos e o negro de toda a envolvente ainda era dominador, um pouco menos ao passar pelas janelas fechadas e pelos vidros que criavam uma pequena aparência de nevoeiro na sua superfície, mas era tudo assim muito calmo, e íamos até aquele pequeno ponto de luz que se mantinha fixo e pleno, cheio de “do” presente de estar vivo, mágico, e da sementeira de um amanhã melhor. Lá dentro, além do bolo, um ou outro artista e os curiosos que nada os entendiam, afinal eram seres tão autênticos, às vezes diferentes, e como dignos de um olhar curioso, místico, curioso, cândido.

Daqueles dias, quase noites, e destas noites quase completas, sobravam, durante as horas de sol, aqueles encontros com os cantos dos edifícios onde a luz era menor, um fascínio que dominava. A novidade de um café ao fim de semana que não era possível durante a semana, e um menor ruído por ali, entre olhares que confiavam num futuro sempre estável, com alguns obstáculos e um percurso sempre ao encontro da esperança que se iria tornar uma realidade. Sem dúvida. E era-a verdadeiramente logo ali concretizada naqueles momentos serenos.

A lente era a prova que faltava para ver a noite no dia e o que o dia escondia… separava os diferentes cumprimentos de onda e ali se encontrava a noite e o dia, dois irmãos de mãos dadas. Os reflexos eram separados do que estava à nossa frente. Espanto, espasmo, perante esta visão…

Espanto sim, mas nunca medo perante este pedaço de realidade, nunca pensávamos em vírus ou em outra dimensão ameaçadoramente escondida. Por aqueles dias a Rua do Conde Redondo, tão pouco turística era tão pouco solicitada como hoje, mas continha em si, tal como tantos outros locais, a paz da serenidade tida como inemutável, com a naturalidade de uma Terra que roda em torno do Sol, acompanhada por planetas ainda mais distantes, todos formando um só, sempre e sempre nas mesmas posições. Os anéis de gelo e pó de Saturno, para todo o sempre iguais a si próprios, refletindo a luz cósmica, tal como as pessoas, transparecendo a tranquilidade de uma paz assegurada, a tal ponto que se usasse o tempo como se fosse infinito.

Eu divagava. Nos pensamentos e nos caminhos, via o que o mundo me mostrava.

Esta divagação não era minha, era-me incutida pela envolvente, sempre plena de um nevoeiro mental, criado pelo coletivo, crente.

Olhei então para uma rua sem saída. Nela um pátio, umas janelas antigas, abandonadas. Uma luz ali vinda de não se sabe de onde. Silêncio. Movimento das folhas daquelas videiras empoleiradas nas estruturas de ferro oxidado. Chão gasto pelo vento, cimento a descoberto, áspero como uma lixa grossa. Os meus pés pararam sem que eu pudesse fazer algo mais. Era então o espetador de um quadro sem moldura.

Ninguém olhara para aquela imagem e tentara desenhar algo a partir dela, ali se forjavam sentimentos sem nexo, pois ali bem perto a rua estava cheia de gente que passava indiferente àquele local. Tudo ali era esquecimento, alguma poeira levantada pelo vento, e luminosidade, que com o ondular das folhas ia mudando as cores do chão, das madeiras das janelas, dos vidros partidos, como se ali fosse um mar interior, ou um lago, com cores esmeralda, misturadas com cores cinza e azul-claro. Ninguém queria saber.

Atrevi-me a fechar os olhos. Ouvi atrás de mim, estranhamente longe, os passos de quem passava, sempre ao mesmo ritmo, a mesma harmonia. Ali à minha volta o toque seco ou verde e esbatido das folhas, mortas ou vivas, o embater do vento nas paredes. Uma voz, longa que não percebia o que dizia nem sequer se me queria dizer algo. Abri os olhos e não me sentia só, era bem-vindo ali, sentia-o, a paisagem era a mesma, entre paredes, o mesmo verde tímido, o mesmo ondular tranquilo.

Eu estava diferente, mas voltei as costas, levando comigo aquele vislumbre de um local diferente.

Regressara à multidão que me dizia para onde deveria ir e ver o que realmente valeria a pena ver. O meu ritmo era comum, seguia em frente. E apenas algum tempo depois voltaria a encontrar outro local como aquele primeiro, cuja localização não desejo partilhar.

Novamente uma entrada numa rua, esta com menor movimento, só que após a entrada ninguém, apenas o meu ser e a luz que agora atravessava por umas janelas, de tal forma que todo o local ficava iluminado de forma natural. A paz impunha-se, não lhe havia alternativa. Um silêncio de pedra, um repouso que resultava da quase total ausência de som, que apenas com esforço era identificado. Era outro local esquecido embora tão belo como o primeiro, e mesmo após eu fechar os olhos, nem uma voz nem um ondular sonoro; nada.

Era engraçado… mesmo divertido, como numa cidade turística alguns locais tão fantásticos eram totalmente ignorados. Saí dali com um sorriso nos lábios. Aquelas pinturas nas paredes e aquelas pedras de cores misturadas, davam naturalidade àquele espaço artificial e pensado para fazer sentir o que eu sentia, aquele impacto de se ser parte de um todo tão maior e tão incógnito. Confiar.

Sem que me apercebesse encontrava um guia turístico dentro de mim que era apenas composto com os locais que me apelavam. Locais que podiam ou não coincidir com os dos turistas “a sério”.

Mais algum tempo e outro local e novamente aquele sentir de uma voz. Desta feita sem som. Era a temperatura do local, e as suas oscilações, que me faziam sentir algo. Uma mensagem. Algo que não consegui nunca traduzir na sua plenitude. Ainda assim, uma mensagem não entendida continua a ser uma transmissão de significados… ainda que sem pleno sucesso.

Um exemplo concreto que me controlou até ao meu profundo ser foi o do jardim do museu de história natural, e ele próprio.

As palmeiras e outras plantas exóticas, vindas de vários continentes e regiões e que ali encontraram paz e silêncio, e logo ali ao lado a confusão da cidade, tudo conseguiam impor aos meus sentidos. Aquele exotismo despertara uma surpresa que a cada metro se amplificava. Não sabia o que dizer, não tinha como me exprimir, as folhas gigantes a serem abanadas pelos ventos sempre em movimento, e o seu verde tão escuro, faziam-me imaginar um arqueoptérix escondido algures. Mas não nada nem ninguém por ali me assustaria. Essa ave ou réptil não andava por ali. Ali mesmo apenas a ausência de som, apenas interrompido pelo roçar daquelas plantas em altitudes que me dificultavam a tentação de ver os detalhes daqueles seres de clorofila.

Ainda outras árvores dispersas entre si com espaços não naturais, mas com ramos e copas livres para crescer até onde e em que direção desejarem, e as folhas a balouçarem por ali empurradas pelos ares em movimento, às vezes com sombras refletidas no chão, outras tantas, nos troncos.

Claro, o jardim foi operado desde o século XVI para o estudo da botânica e ser a casa de plantas raras de todo o mundo e é isso que lhe traz ainda mistério. Ao fundo, é possível ver algumas janelas do museu de história natural e pelos seus vidros escuros imaginar os laboratórios antigos… ao centro um espaço sem teto, que é possível ser visto a partir de um 1º piso em forma de varanda interior.

Mesmo ao lado, as janelas do edifício do museu; tão escuras tão tais quais buracos negros ali colocados para me espreitar e levar para dentro. Lá, após a escuridão, após as luzes rarefeitas pelos impactos nas paredes: a baleia gigante, tão grande como na realidade, tão enorme como os sonhos que todos nós temos um dia qualquer, nem que seja de plena felicidade. O corpo azul, artificial, pendurado no teto e visível de todos os pontos de vista, fazia-me sentir no oceano. Apenas aquele ser e eu. A sala toda vazia e preenchida pela minha respiração e aquele olhar omnipresente. Os meus ouvidos já ouviam as ondas do mar, sem que as ouvissem realmente.

Segui, pelo corredor, a ouvir oceano interior. Descobri novas salas. Vultos. Músicas feitas de ruídos ocasionais. Encontrei novos espaços.

Por ali, os tons sempre muito pardos e a fazer parecer uma parede como continuação do chão e após eles um teto bem alto… Tudo muito estranho. Instrumentos que já não se usam. Pequenos seres em formol.

Sem dúvida, por ali, podemos sentir que somos de novo crianças, confrontados com a primeira vez que sentimos curiosidade, um pouco antes de sentir medo por não conhecermos o que está no escuro e um pouco depois da brincadeira, e da primeira dentada num bolo de chocolate doce e meio parecido com uma tarte de maçã.

Depois, pedras todas elas preciosas para quem as vê, a brilhar em redomas de vidro. Silêncio. Luz. Vultos. Trumalinas verdes. Ágata verde. Imaginação… saudades… crepitação. Os nossos próprios vultos e os sons apenas dos nossos passos. Nossos… porque ali logo ao lado passaram duas mulheres alegres, vindas de lá ao fundo, meio acompanhadas pela luz que ali inundava o espaço, as suas vozes abafadas por aquele contexto como se pressão atmosférica invadisse aquele lugar. Sorrisos suaves. Esperança nas suas faces. Delicadeza. Imposição da sua presença. E vou, quase sem saber, até à sala do veado, olho para uma pintura ali pendurada e viajo novamente até lá fora, ao jardim…

Ali as árvores belas, por vezes tão distantes das irmãs que não sei se são capazes de comunicar através das suas raízes. E onde não há comunicação não há emoção. Sentir só mesmo através do vento, alguma hormona levada pelos ares, uma cumplicidade físico-química, uma magia encoberta pelos detalhes que o tempo não pôde lapidar, ou seja, uma ação que nós, pessoas “normais”, jamais conseguimos interpretar e acreditar que existem. Afinal este é o profundo revisitar dos nossos primeiros dias, iluminados pela nossa curiosidade inata. O brilho indomável de uma criança deslumbrada.

Um pouco mais adiante, quase na saída do jardim, as estufas com fábricas de pinturas no seu interior e vasos… um olhar dormente, espantado, com aquela diversidade. Mesas, cadeiras, folhas de papel, lápis, pincéis, regadores, flores, folhas vivas, olhares em paz e absorvidos pelo que ali faziam. Pessoas a sorrir. Sem pressas.

Do lado de fora, tábuas sobre as águas de outono, ou as regas da primavera tardia. Terra húmida. Cheiro a campo, não a cidade, mas o fumo vinha de longe e ali emprestava um toque metálico, pelo que tudo se perfumava. O verão em certas fases do ano adivinhava-se e a nostalgia da primavera e da sua agitação, continha alguma satisfação com a sua chegada… O rubor das frutas surgia ali saído das malas dos jovens pintores e pintoras. A partilha de experiências sobrepunha-se a alguma dificuldade do praticar das linhas exatas ou livres.

E ainda noutro dia, de novo na Praça da Alegria, aquelas árvores torcidas e antigas, o espaço a apelar a pedaços de imaginação incandescente, e a envolvente dos prédios vizinhos, por vezes, demasiado escurecidos, tensos, rugosos, lúgubres. Todavia, naquele centro de paz luminosa, a fazer recordar as tendas brancas de tendas de Verão, os seus tecidos crepitantes, onde surgem trabalhos de artistas, curativos… e alguns dias acompanhados por música, com ritmo animado e ainda sempre aqueles vislumbres, quase não percebidos de um qualquer passado “apenas” diferente. Sendo que me ia dali em passos serenos, afinal tudo estava explicado e conhecido; a verdade plenamente à minha frente. Até que algures no tempo, chegou a mim a informação que em outros tempos esta praça tinha outro nome: Praça do Suplício… O passado de execuções havia sido reconvertido, vencido pela claridade da manhã. E foi entre estes pensamentos tortuosos, este torpor assustado que eu continuei a minha “marcha”, acordei deste sonhar acordado, e vi que estava só, rodeado de silêncio, sai dali sim, mas já neste “nosso” dia tão inesperado e de tão inesperada capacidade para me afastar destes pensamentos desassossegados. Entre os prédios passava, adiante, a luz do sol, e eu vi o seu reflexo num espelho frontal de um automóvel, parte desse brilho veio na minha direção, difuso, tal qual o meu sentir. Olhos semifechados. A minha respiração gradualmente retornava à sua original suavidade, à medida que aquele ar sem fumo e sem liberdade na saúde se embrenhava nos meus pulmões. Expirei finalmente… a paz tomou conta de mim. Prossegui. Além o futuro.

Apercebia-me, lentamente que os pensamentos não coincidiam na localização com onde me encontrava. Esta dissociação, esta dessincronização, não me permitia sentir-me plenamente acordado.

Tal como quando um dia vi, contemplei, quase em adoração, aquela imagem maior de uma ave extinta, dominadora ao cimo da escadaria da entrada do Museu de História Natural de Lisboa, do lado da Rua da Escola Politécnica. Do mesmo lado do Príncipe Real. Do mesmo lado daquela Igreja que olha para nós ao passarmos apressados e inconscientes. Do mesmo lado do passo ali feito algo tão real como o vapor a sair dos meus pulmões, dissipando-se em vago calor à minha frente, sem que eu o veja e apenas um pouco mais que nada o sinta.

Verde. Das árvores e arbustos e lagos sem água, mas atulhados de visitantes que por ali ficam, sentados e assentir a vida a esvair-se entre as pessoas, entre os seus sonhos e dificuldades até que percorram o seu caminho. Olho para alguém que se cruza comigo, quando a partir do cimo da escadaria olho para a rua… os nossos olhares cruzam-se e eu leio nesses espelhos um sentir tão igual ao meu ainda que num contexto diferente.

Como eu queria partilhar a maravilha que sentia ao ver aquelas penas, ou pelos castanhos, daquela ave gigante… aquela dimensão tão maior tão mais importante. Testemunha de outros tempos e outras latitudes, longitudes; histórias fantásticas que nunca viverei, por ali naqueles continentes, ilhas tão diferentes, mais perto do “fim do mundo”, mais perto daquela Oceânia de esperanças onde cangurus e lobos da Sibéria conviviam aos saltos :-| Não temo ir até lá. Temo apenas não os encontrar por lá… estes irmãos de vida. Irmãos, filhos desta mesma terra, redonda e gigante e viajante do espaço, onde, por ser redonda, como uma bola nas mãos de uma criança, todo o início do mundo é também um final do mundo. Tudo e nada são possíveis.

Dentro de mim ficou aquele instante, voei com aquela ave, e por ali fiquei a regressar ao presente, ainda um pouco dormente. Não havia ninguém naquela rua. Apenas eu sonhava por ali.

 

Até breve.

Capítulo III por Rui M.

por talesforlove, em 28.03.23

Já lá vão uns tempos desde que surgiram no blog dois primeiros capítulos de um conto a ser escrito a pouco e pouco. Ainda sem título. Um possível primeiro título poderá ser: Num dia que é nosso.

Capítulo III

Aquele caminho revelou-se também ser o destino, o que quer que isso seja, e talvez não seja mesmo nada, apenas uma imaginação nossa, um fruto imaginário na Praça da Alegria em Lisboa que resvalasse pelo declive daquela rua até à Avenida da Liberdade e fosse ao nosso encontro, sem que nada pudéssemos fazer além de aceitar esse facto e de ficar ali a ouvir uma música a vir do bar ali ao lado, também ela sem permissão para nos abordar mas ainda assim a gostarmos de a ter connosco.
Será aquele caminho uma coleção de destinos, será mais correto afirmar, e ali no Largo do Camões dei uns passos mas estava preso lá atrás, ali naquela rua a descer até ao rio e na Rua do Alecrim, nos estuques com formas de instrumentos musicais, a música novamente a assolar-me, na luz de Verão ali única como uma visão de uma montanha imponente e tão bela que nos preenche até onde não sabermos compreender e depois aquela inclinação a caminho de um céu cor de melão amadurecido e emoldurado com buganvílias rosa violeta que cativam as nossas retinas, embrulhando aqueles edifícios antigos e quiméricos, com varandas de pedra branca, sólida como o tempo ao qual estes e elas sobreviveram. O branco daquele frio feito de rocha ali a dar um toque de Outono frio a um calor humano em digressão pelos dias sem nexo.
Esta Rua do Alecrim fazia-me sentir, em qualquer momento do ano, o calor ondulante das asas de andorinha a voar e isto tudo ao mesmo tempo que o seu piar criava, sempre, uma nova Primavera a cada momento daquele alegre movimento. E ainda faz. E ali se materializava o amor maternal da natureza, sempre desventrada para nos acolher, nos alimentar de sonhos e crescimentos sem fim e sem extinção de uma qualquer força adolescente. Sons de outrora de músicas, novamente, a sair por portadas de janelas a aconchegar os nossos peitos, estimulando os nossos tímpanos, cuja existência julgávamos ser apenas um detalhe de um qualquer livro de anatomia escrito para nos ocupar os melhores tempos das nossas vidas. Fugas ao final do dia, calor de um scate ou um carrinho de rolamentos debaixo dos nossos pés, um braço raspado na terra, e pedras que em nós se espetam durante uma queda, e estrelas, sempre elas, que nos mandam para casa, como nossas tutoras da vida………………………. Sem fim a sua luminosidade, tal qual o nosso sentir, sempre maior que o tempo durante o qual o temos como parte de nós, nosso sangue e ser, sempre enorme, sempre mais vivo que aquele alecrim a que alude o nome desta rua. Constantemente verde como a planta cujo nome é homónimo do daquela rua. Nossa. Minha. Tua.
Ah! Meu amor, os meus olhos não choram por ti, como na canção do alecrim, mas choram por esta rua sempre cheia dos tais estuques de música e horizontes de verões sem fim, de cores mais quentes que o sangue nas minhas veias e pouco menos vermelho que uma rosa recém brotada.
O Jardim da Estrela ficava bem lá à frente, como uma quimera que se vai formando com o tempo na nossa mente a partir de alicerces feitos de minúsculos pedaços de memórias que perduraram, tais como bocadinhos de cerâmica entre uma qualquer ruína antiga. Imaginava-o agora como uma via láctea cujas estrelas eram árvores, os ramos, caminhos desenhados em mapas de luz, entre reflexos neles, e nebulosas de poeira tais quais matérias-primas para os anéis de Saturno, misturados com gelo, talvez o frio daquele dia congelasse não apenas o universo das minhas esperanças, mas também exatamente a água daquele céu feito de lembranças. Nada mais selvagem e livre que as memórias do passado, que nos tomam de assalto sem aviso prévio, sem nos deixarem responder e ficamos imobilizados até que o vento, tal qual testemunho do vácuo universal, nos leve para outra constelação e outros céus feitos de luz e paz.
E de tantos instantes esperar ali os meus olhos desenhavam uma ilusão de maior proximidade, lá ao fundo era a minha casa, onde aqueles braços vegetais sempre me abraçavam e apoiavam ainda que eu, traidor involuntário, os esquecesse por longos períodos, de tempos imprevistos. Mas sim para elas o tempo é o do universo, de uma vastidão que o meu nunca alcançará…………….. Não lhes seria tão penoso esperar. Eu estava ali sozinho naquele dia e aqueles sons cercados por silêncio humano.
A proximidade era feita de cheiro que o tal vento me trazia gélida e suavemente, ainda não era o odor a erva a crescer ainda verde e viçosa, mas, este tão só sinalizava uma humidade que parecia vir de uma lenha exposta ao frio, cortada por alguém que carinhosamente a preparara para alguém indefeso. Sentia-as, as estrelas digo, à distância como se lentamente o próprio local me iludisse com um falso sentimento de familiaridade, porque ainda não estava lá sendo como se estivesse……. Era verdade era já vizinho da fronteira daquela terra à qual eu pertencia e isso bastava-me.
Mas ainda faltava caminho a percorrer para ver aquele local único. Eu descia aquela estrada, para mim sem nome, e os meus olhos cruzavam-se com os de uma senhora de idade avançada que a partir de uma janela me fitava quase como um ser de outro planeta. Acenara-me e sorrira-me, eu parei e respondi. As ruas estavam desertas, o vento tudo enchia, e ela de cabelos brancos atrás do vidro, não tinha o cabelo a ondular como sucedia com o meu. Eu era aquela pessoa que estava ali mas que na realidade deveria não estar por causa da pandemia... Mas isso não interessava a ninguém, à minha pessoa certamente que não e o meu olhar descansava finalmente em olhos maternais, plenos de vida e de sabedoria; sem troca de palavras, sem redação cuidada, sem uma palavra dita, sem que as portadas se abrissem, sem que tudo isto fizesse falta para nos dizermos um ao outro: como foi bom ver-te hoje, aqui e agora, neste momento só de vento, só de frio, só de sons naturais e urbanos, só de: de estarmos a sós.
Foi tão bom. Sorri de novo e fui por ali abaixo. Debaixo dos meus pés gerava-se um som quase como o gelo de inverno em estrada de terra batida, era quase como se cristais se partissem à minha passagem, e afinal era areia, afinal ia feliz ainda que sentisse que aquele olhar verdadeiro e integro poderia jamais voltar a cruzar-se com o meu… mas havia-se cruzado. E fui. Até que a estrada larga, que eu procurava, ficou à minha frente, ornamental e longa como qualquer coisa pura e natural que eu tinha dentro de mim. Tão bom...

 

Até breve.

 

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