3 Poemas e 1 Livro
Hoje publicam-se três poemas, todos eles com uma abordagem diferente.
Recorda-se que está a decorrer o Concurso Literário Natureza África, conforme a publicação anterior.
Pela primeira vez, informa-se que estamos a recolher fundos para um livro solidário, na área da saúde e culinária. Para mais informações, por favor, envie-nos um e-mail para ruiprcar@gmail.com. Obrigado.
A meio (do tempo) da madruga, por “Miguel S.” (Portugal)
A meio da madrugada, acordou-me o Tempo.
Senti.
Eu era um elo numa corrente,
de vida e metal; um elo.
o Sol aqueceu a Pele,
o rubro-rosa invadiu-me,
eu era gota de Infinito;
esse ser nunca visto
mas sentido sempre.
Andrómeda chama,
o seu calor, vislumbro-o,
no meu coração,
não aos meus olhos.
No exato momento em que o Sol cismava sobre mim,
olhei o horizonte…
Lá encontrei o meu reflexo;
um nada revelou-se…
Tão pequeno, tão sem escolha humilde,
Um ponto no firmamento,
Mais pequeno que um ponto de luz.
Sem cor, apenas efémero,
Como a onda que bate, na areia,
a espuma que se dissolve,
um segundo efémero;
o peixe balão que não vi…
a criança que não riu…
Tudo o que não vi e, ditatorialmente,
não faz parte de mim…
E eu ambicionava ser espuma,
não temer o calcário, a pedra,
o frio, o gelo, o cadáver, o medo,
a morte, a vida… o tubarão.
Andrómeda, chamou-me…
e eu fui…fugi.
A meio da tarde: capitulei.
Sou um elo, não tenho o direito,
a negar-me ser esse pedaço de intemporalidade.
Eu sou caminho, um caminhante que doa o testemunho.
A noite fechou-se sobre mim.
Vi-a. Era dominadora.
Não a abracei,
Porque não podia.
A madrugada chegou e,
Só então: as pálpebras desceram.
Esqueci-me de tudo, esvaneci-me.
A Pele sentiu o Sol…
Enrosquei-me como um caracol.
Os dois poemas seguintes remetem para o ser-se criança e tudo o que isso pode implicar. Existem desafios e sobretudo a esperança de muitas brincadeiras!
Alenice no Vale das Araucárias, por Carmen Seganfredo (Brasil)
Trazei lápis, papel, tinta,
a paleta da aquarela.
Trazei o olhar da criança,
o silêncio da vaca amarela.
ABC faça a sua parte!
Lembrança, risque o papel!
Com calma, bem devagar.
Com dom, talento e com arte,
rabisque pedras, riachos,
favos de abelhas com mel!
As raspas doces dos tachos
Os folhetins de cordel.
As correrias cortantes,
em meio ao milharal!
O cheiro de pessegueiros.
de erva-mate e xaxinzal.
O vento no canavial.
Escaladas no coqueiro.
Êta vista fenomenal!
Em linhas, belas, retilíneas
Sete espécies de gramíneas
Arroz que não há igual.
Florestas de araucárias,
altas, fortes, centenárias,
misturadas às bananeiras.
Eis que entre morros, ladeiras,
No vale das araucárias,
surge, intacto, o meu lar.
De repente, sem cansar,
nas asas da imaginação,
salto muro de três metros,
rompo as grades do portão.
Rebento a chave da porta
Quebro tranca e cadeado,
alarmes, gongos, dobradiças.
Rompo janelas, vidraças,
se estilhaçando no ar.
O perfume do jasmim,
entrando pela janela,
se espalhando no jardim,
sob o voo do colibri,
sob o andar do caranguejo.
Ao sabor do dia sem pressa.
Ao som de risos, gracejos.
Com uma lanterna na mão,
me aventuro até o porão.
Um barril tomba de um lado.
Rola outro pelo chão.
Os cheiros se sobrepõem,
frutas, cereais e feijão.
vermute, vinho e quentão,
paçoca, rapadura e rojão.
Êta mistura danada!
É tempo de São João!
Vejam só o que é façanha.
Misturado na farinha,
no vinho, pão e linguiça,
rompendo teias de aranha,
desde o teto até o chão,
salta o gato encurralado,
escoiceando qual alazão.
Sobre cachos de bananas,
pula o macaco e o cão.
Em engradados de Grapettes,
a corrida se repete.
Tombam vidros de chicletes,
que eu apanho com duas mãos,
gargalhando em alto som.
Se arrastando, um ancião
surge, empunhando um lampião:
- Quem invade o meu porão?
Irrompendo qual furacão?
trazendo à vida, almas mortas!
Pisoteando forte ao chão
Quebrando as trancas das portas
Nesta velha moradia
Fazendo bater coração
Onde nem mais pulso batia?
- Maravilha, quem diria?
Com meus gritos de alegria
Acordei quem já dormia!
Na magia da alquimia.
No sono eterno dos dias.
- Oh, é você, vida minha!
Quanto por ti eu busquei;
Disfarcei o que podia.
Não me deram novas tuas,
perdi a vergonha e chorei.
- Cadê a nossa mesa cheia,
com fartura e parentesco
Que cá estou e ainda não vi?
Cadê o cheiro de café,
transbordando leite fresco?
O canto do bem-te-vi?
O preparo para a ceia?
A fumaça na chaminé?
A chaleira no fogão,
As brasas queimando o chão?
- Sua mãe planta lá na horta,
No canteiro todo em flor
Figo, alface, uva e romã.
Ou assa cucas, faz tortas.
Ou borda no bastidor,
vestidos de borboletas
de cor bege e violeta,
para você e sua irmã.
Ou enquanto reza e medita,
Faz pra noiva um enxoval
Repleto de rendas e fitas.
Procure, vasculhe, veja!
Pode ser também que esteja
Lá benzendo o temporal.
Enfrentando o vendaval.
Ou, verdade seja dita
Isso ela também faz
Às vezes esbraveja, grita
Com fervor a bíblia cita
contra uma corja maldita,
censores da liberdade, da paz.
Seu pai vende no armazém,
fiado para quem não tem
comida e sequer vintém.
Ou se desdobra em dez mil
Pra convencer o viajante
De que anda tão senil
Devido a uma moléstia febril,
Que esqueceu que desde abril
Deve esta conta aviltante.
Sua irmã chora lá no canto,
porque nem sapato tem.
Outra irmã vem do internato,
cheia de novidades.
Se chamando juvenista.
Com ares de sabichona,
olha a moda na revista
Discute até com a nonna.
Conta histórias, lê aventuras!
Desenha pássaros, flores,
com arte, talento, encanto.
Escreve versos de amores.
Lê poemas, entoa hinos!
Faz tortas de todas cores.
Vestidos, de rendas, finos.
Vamos, vamos, Alenice!
fazer no cabelo a trança,
que é tempo de meninice.
Neste dia que não avança,
correr da sala à cozinha,
da varanda ao fim da linha.
Antes que a enchente suba,
Que a chuva aumente e nos cubra.
Vamos, menina, anda!
Vá cantar lá na varanda
A música da Viuvinha
Ao aroma da canela,
Ao ruído da chuvinha
Ao chiado da panela
Ao sabor do bom café.
Enfim, faça o que quiser!
Quem sente que está onde ama
Se diverte até na lama.
rola montanha, se arranha,
se embola, fere, se esfola,
gargalhando até o sopé.
Se, de castigo, apanha!
Saltita nas molas da cama.
Brinca seja onde estiver.
Num piscar estou na venda,
Na avenida Araucária.
Nem número a casa tem.
Êta infância extraordinária!
Vem entrando, freguês, vem!
Velhos, adultos, crianças.
Comprem, que aqui tudo tem.
Aponto com a mão e sugiro:
Queijos, baleiros, balança.
Do que mais gosta a piazada?
Sorvete seco, suspiro?
Chocolate, maria-mole,
bala, chiclete, pirulito?
Ou doce de marmelada?
Para a turma de boné:
Tem bombinha e busca-pé.
Bolitas de todas cores.
Carrinhos e o que quiser.
Bem na ponta dos meus pés,
mal alcançando o balcão,
Ofereço com duas mãos,
vinho doce em garrafão
e bandejas de pinhão.
Pão quente, bolo, cachaça,
vermute, grãos e café.
Conto o dinheiro, trocado
Um lindo anjinho barroco
Entra na venda de troco.
Aqui é importante a fé.
Quando a freguesia vai embora,
sei que chegou a hora,
de espanar mesa e balcão
com o velho espanador
de belas penas de pavão.
Varro a poeira do chão.
Só não vou lavar mais copos,
porque já feri a mão.
Hora de ir à escola.
Tentar gazear nunca cola
E é tão perto que eu diria
Que nem a Irmã Inocente
que adora punir inocentes
Conseguiu colocar a gente
Nos castigos que queria
Por atraso de um só dia.
Depois é só diversão.
Vou ler no fim do terreno,
onde uma vaca me olha.
com um sorriso lhe aceno.
Eis o meu refúgio querido,
Ar puro qual da Amazônia
Que eu chamo de Evasão.
ali eu brinco com a Ivânia,
vizinha da mesma rua.
Amiga do coração!
Lá vamos nós as duas
Pular corda, amarelinha
Nas calçadas, em plena rua
dar palmadas na peteca.
Brincar de mãe, de casinha
Embalando uma boneca
Entre pilhérias, risinhos
Com carinha de sapeca
Vamos as duas de fininho
Comer pêssegos no pé,
trepar em árvores, sem medo
sustentadas pela fé.
Falando baixo, em segredo
Pisamos em galhos finos
Mesmo que a rama estremeça
Viramos de ponta cabeça.
Para ver o mundo às avessas.
Ficamos horas assim
Vendo no chão, o capim
O canteiro de amendoim
Os moranguinhos maduros
Em meio à sálvia, o alecrim.
Quando quero vou correr.
Além da cerca vizinha,
sob o parreiral de uva.
Faça sol ou faça chuva
É toda vontade minha,
cruzar espaços e linhas!
No correr perco o sapato.
Tropeço, rasgo o vestido.
Chorar por pouco é bobagem.
não adianta, e é sem sentido.
Vejo um morro de serragem
Brincar nele é um espetáculo!
Com a presteza de um potro
Salto barreira, obstáculo
Pra alcançar a serraria
Quando o que o meu pai queria
É que eu fosse à padaria
Com um pé e voltasse noutro.
Lá no alto, o Seminário
Subo o monte até o cume.
Escorrego morro abaixo.
Num tombo extraordinário.
Cruzo o colégio das freiras.
E com duas piruetas certeiras
Mergulho lá no riacho
e atravesso a ponte embaixo.
Num salto agarro um galho,
Tombo às margens, rolo ao chão.
Sigo em frente qual andarilha,
pelas ruas de Maravilha
Cidade do meu coração.
As peripécias de Lucas, por Carmen Seganfredo (Brasil)
Na praia de Sta Terezinha.
Após longa caminhada
Com charadas, adivinhas
As mãos cheias de conchinhas,
Lá vai o Lucas, ligeiro,
Recolher lenha, madeira
Fazer fogo na lareira,
Fumaça na chaminé!
Ao som de risos, gracejos.
Joga basquete, raquete.
Dá palmadas na peteca
Joga Uno, xadrez, cartas.
Faz mágicas, às vezes acerta
O nariz escorrendo meleca,
Arremessa forte a bola
Pula a cerca do vizinho
Rola a bola e cai na lama.
Ele limpa na blusa e reclama.
Mas logo em seguida sorri.
Sobe em árvores, monta em cães.
Come balas, bolos, pães
Mangas, uvas e ariticuns.
Aos arrotos, espirros e puns.
Empina pipas, aviões,
Faz estouros de bombinhas
E roda o pião no chão.
Joga também bilboquê.
Dá sustos com busca-pés
Numa argúcia repentina
Sem aviso nem porquê
Ateia em todos os pés.
Com gargalhadas cretinas.
No dia de um santo qualquer.
Lá num canto o celular
Caído embaixo da cama
Vídeos, games, nem penar
Aqui a natureza chama
Aqui a vida é real.
Do que mais gosta o Lucas
Que não salgados de milho?
massas, bolos, sushis, cucas
chiclete, bala, sucrilho?
Um jantar bem preparado
Com risoto e abobrinha,
só de coxas de galinha.
Também pizza calabresa
E uma boa sobremesa
com chocolate de surpresa.
Depois da barriga cheia
E quebra-cabeça montado
Senta o Luquinhas na sala
Com lápis de todas cores
Desde o verde até o carmim
Tinta guache, óleo e nanquim
Tinta acrílica e pincel
Com uma pilha de papel
Esparramados no chão
Numa bela confusão.
Com dom, talento e com arte
Cada herói faz a sua parte
Nas asas da imaginação
Do nosso Niquinho em ação.
Rabisca monstros, avatares
Heróis de todos os tipos
Com suas marcas, logotipos
Saltam vivos do papel
e saem voando pelos ares
num diversificado tropel.
Sob os louvores da mãe,
de belo nome Graziela
que diz ser melhor que os dela.
Entre a bagunça da sala
A criatividade é quem fala.
Até breve.