Para as vítimas dos Fogos e Cheias
Os recentes incêndios no Canadá, Chile e EUA, com as altas temperaturas a acompanhar a tragédia, só por si já eram manifestações importantes de alterações climáticas e/ou ação nefasta dos seres humanos sobre o ambiente.
Recentemente, as cheias na Alemanha, confirmadas como um resultado de aquecimento global, somam ao espanto já antes sentido... Afinal, é mais uma situação difícil de entender.
Fica hoje um conto por Vitor G. (Brasil), no qual a natureza é vista com alguma apreensão.
Título: Conhecendo a natureza
Eu estava voltando do trabalho para casa, andando pelas ruas
movimentadas e escutando nada a não ser o som de motores e buzinas. O
ar estava fresco, mas eu sentia a poluição do trânsito, que o deixava
mais pesado. Já começava a anoitecer e as luzes dos postes já se
acendiam, tingindo o solo de um tom ora amarelado, ora azulado, num
contraste entre quente e frio que dava um aspecto ambíguo às ruas.
Isso se dava por estarem substituindo as lâmpadas de vapor de sódio,
amareladas, por lâmpadas LED mais modernas, de tom azulado. Segui pelo
caminho, observando as luzes e o intenso azul-escuro do céu que
anoitecia.
Caminhei pensativo, com as mãos nos bolsos e cabeça arriada, olhando
para o chão e desviando dos lixos que via pelo caminho. Minha vida era
infeliz. Eu podia até ter um trabalho que pagasse razoavelmente bem,
mas não tinha mais nada, nem amigos, nem família. Nada. Pensei em como
minha vida era desse jeito devido à maneira como a sociedade moderna
vive. Nós nos afastamos da natureza de tal maneira, que vivemos num
mundo artificial, fazendo atividades artificiais e vivendo
relacionamentos artificiais.
Imaginei então que eu pudesse buscar ter mais contato com a natureza.
Isso talvez me fizesse bem, mesmo que se fosse apenas por alguns dias.
Eu estava prestes a entrar de férias no trabalho, então imaginei que
eu pudesse aproveitar alguns dias em algum lugar mais afastado.
Cheguei em casa e logo pesquisei na internet por locais turísticos,
com natureza, próximo de mim. A maior parte dos lugares que eu
encontrava eram hotéis fazenda, mas não era o que eu queria. Eu queria
ter contato com algo natural, que pudesse me sintonizar com a natureza
de uma forma mais primal, então continuei pesquisando até encontrar um
hotel próximo a um morro na região. Não era um morro muito alto. Seu
ponto máximo estava a 405 m de altitude. Podia não ser tão alto, mas
para mim, que vivia preso dentro da cidade, seria algo fabuloso.
Pesquisei então pelos atrativos turísticos do local e vi que haviam
diversas trilhas que poderiam ser feitas. Isso era exatamente o que eu
precisava. Fazer uma trilha até o topo do morro certamente me faria
bem e me conectaria com a natureza, há tanto desconectada, pelos
longos anos preso dentro da mesma cidade.
Eu nunca havia feito uma trilha como essa antes e não fazia ideia do
que levar, então pesquisei na internet e encontrei diversos vídeos
explicando as dificuldades que eu enfrentaria e me recomendando que
utilizasse calças compridas, tênis, boné ou chapéu e repelente, além
de levar água para ir bebendo durante o percurso. Foram ótimas dicas.
Eu já pensaria em ir de calça e tênis, mas não teria lembrado de levar
o repelente.
Sem delongas, fiz minha reserva no hotel e já no dia seguinte, comprei
o repelente numa farmácia. Aguardei ansiosamente até que entrasse de
férias, para comprar minha passagem e me preparar. Arrumei minha mala
dias antes, colocando tudo que precisava e conferindo várias vezes,
para me certificar de que não estava esquecendo nada. Enfim, o dia
chegou e caminhei com a mala nas costas até a rodoviária, onde peguei
o ônibus que me levaria ao local. Foi uma viagem tranquila e sem
eventos. Passei a maior parte do tempo olhando pela janela e
observando como a paisagem se transformava gradualmente, à medida que
eu me afastava dos centros urbanos. O cinza era substituído pelo verde
e as caóticas construções de concreto e argila eram substituídas,
primeiro por longos campos repletos de gramíneas, onde podia-se ver
numerosos rebanhos pastando sob o ameno sol da manhã. Em seguida, os
campos eram substituídos por densas matas, por onde os raios de sol
sequer conseguiam atingir o solo. Eu me aproximava do local.
Desci do ônibus num pequeno povoado próximo ao morro e de lá, segui
para o hotel, onde desfiz minha mala e tomei um banho. Em seguida,
desci para almoçar num restaurante próximo. Era um local rústico e de
comida caseira. Não havia nada de luxuoso, mas a comida era gostosa.
Retornei ao hotel para escovar os dentes e então caminhei até o parque
do morro, onde aguardei na recepção de turistas, enquanto esperava que
o pesar do almoço se aliviasse. A recepção era uma construção simples,
onde várias pessoas entravam e saíam. Os que estavam chegando, paravam
para ler as informações sobre o lugar, enquanto os que estavam
retornando, paravam para descansar.
De acordo com as informações nos cartazes, o morro tinha 405 m de
altitude, o que não era nada espantoso, mas era o ponto mais alto da
região e possuía um dos maiores isolamentos topográficos do país, de
aproximadamente 2000 km, significando que em um raio de 2000 km não
havia nenhum ponto mais alto do que aquele. Após ler diversas
curiosidades sobre o local, saí e caminhei rumo à trilha. Eu estava
preparado, com a roupa adequada, repelente e água. Não levei mais nada
e sequer carreguei o celular para tirar fotos, pois eu queria me
aproximar da natureza.
Iniciei a caminhada entusiasmadamente, em rápidas passadas. À minha
frente havia um grupo de jovens, que ocupavam toda a espessura da
trilha, então procurei a primeira oportunidade de deixá-los para trás
e segui. Passei por algumas pessoas que subiam sozinhas, alguns casais
e um grupo da terceira idade, que pareciam ser os mais animados de
todos.
Eu estava tão acostumado a andar em planícies, que a subida me cansava
facilmente. Eu sentia o esforço dos músculos das minhas pernas,
enquanto minha respiração ofegava. Percebi que eu jamais conseguiria
chegar ao topo se andasse daquela maneira, então diminuí o passo e
parei para descansar em alguns pontos. Logo vi algumas das pessoas que
eu havia deixado para trás me ultrapassando.
Bebi um pouco da água e continuei. Dessa vez, andei mais calmamente,
observando a paisagem. Havia a mata para ambos os lados e a trilha era
a única parte onde se podia andar. Estava ligeiramente escuro, apesar
de estar em pleno início de tarde. O verde das folhas parecia
refrescar a minha visão, há tanto contaminada pelo cinza O ar, embora
mais difícil de respirar, era agradável e de pureza inigualável.
Caminhei por entre as folhagens, escutando os sons de pássaros por
toda parte, num coro que superava em beleza a música de qualquer
orquestra. Segui, acompanhando a trilha com cuidado, sempre observando
onde pisava. Eu estava prestes a entrar em contato com a natureza e
conhecê-la como nunca antes.
Precisei fazer mais uma pausa e bebi o restante da água que eu tinha.
Meu suor escorria pelo rosto e meu coração estava disparado. Sentei
numa pedra e descansei por um longo tempo, até que me recuperasse por
completo. Não tardou até que o grupo de jovens passasse por mim, me
deixando para trás, numa ironia que parecia ser proposital.
Levantei então e continuei a subida, que se tornava mais íngreme. Os
músculos das minhas pernas doíam a cada passo e eu já me perguntava se
eu não deveria retornar, mas eu precisava me aproximar da natureza e,
certamente, o topo do morro seria um formidável ponto para meditação.
Além do mais, dizem que o caminho de volta é sempre mais fácil, então
persisti, ainda que em fortes dores.
Mais uma pausa foi necessária e dessa vez eu não tinha água para
beber. Enquanto eu repousava, o grupo da terceira idade me
ultrapassou, me deixando constrangido com a situação. Eles claramente
não viram maldade alguma em me ultrapassar e me cumprimentaram
calorosamente antes de seguir. Pensei em acompanhá-los, mas eu ainda
não havia descansado o suficiente. Olhei para uma placa de indicação e
vi que eu já estava na altura de 320 m, então não faltava muito para
terminar a subida.
Com sede, fome, cansado e dolorido, continuei o percurso, que se
tornava tão íngreme, que eu já apoiava as mãos no chão para ajudar,
mas, ainda assim, persisti na minha subida. O sol já não estava mais
tão intenso e, sob as folhagens, formava-se uma sombra assustadora,
que me dava uma sensação de pressa como nunca antes, fazendo com que
eu adiantasse os passos, apesar da minha condição física.
Eu já cruzava com diversas pessoas descendo o morro, fazendo o caminho
de volta. Muitas delas eu reconhecia, pois haviam subido comigo ou as
vi na recepção. O volume constante de pessoas retornando me fazia
perceber que já estava ficando tarde e que logo o sol se esconderia,
deixando uma profunda escuridão, que muito dificultaria o trajeto. Eu
me perguntei mais uma vez se eu deveria descer logo, mas faltava pouco
e eu precisava muito desse contato com a natureza, então persisti,
usando todas as minhas forças para terminar o percurso.
A vegetação já se tornava esparsa e dava lugar a um terreno rochoso,
indicando que eu me aproximava do topo, o que era confirmado pelas
placas de indicação, que mostravam a marca de 390 m. O céu já adquiria
uma tonalidade rosada, sinal de que o sol se aproximava do horizonte e
que eu deveria me apressar ainda mais. Eu apenas subiria ao topo para
contemplar a natureza e logo desceria, antes que escurecesse, pois não
fazia mais sentido retornar no ponto onde eu estava sem visitar o
tipo.
O momento chegou e eu estava prestes a atingir o topo do morro, de
onde eu poderia contemplar a natureza como nunca antes. Eu estava
sozinho, o que me daria uma maior introspecção. Um estado de ânimo se
espalhou pelo meu corpo, enquanto eu dava os últimos passos, forçando
minhas doloridas pernas a subir. O céu já estava prestes a iniciar a
escurecer e eu deveria ser breve. Apenas contemplaria brevemente a
natureza e retornaria.
Eu não sei o que eu esperava encontrar no topo do morro ou de que
forma a natureza se apresentaria lá de cima, mas a imagem que vi me
chocou, fazendo com que eu repensasse tudo que havia construído a
respeito da natureza. Assim que cheguei ao cume, avistei um gavião que
estava a devorar uma ave menor, que, ainda viva, sacudia o corpo em
vãs tentativas de fuga. A ave estava com o corpo aberto e suas
entranhas expostas, agonizando de dor, enquanto o gavião beliscava sua
carne esporadicamente e a engolia com uma calma perturbadora,
levantando o pescoço e olhando para algo distante a cada nova
beliscada, sem se importar com o sofrimento da ave e sequer se dando o
trabalho de matá-la antes de comer. A julgar pelo estado em que se
encontrava, a ave parecia estar ali há algum tempo, numa incessante
agonia, sem forças para sequer clamar por socorro.
Ao me aproximar, o gavião se assustou e voou, largando a desafortunada
ave para trás, diante dos meus olhos, em sua agonia terminal. Era uma
imagem perturbadora, que me fazia questionar minha subida ao morro.
Tentei observar a paisagem, mas eu não conseguiria ignorar o
sofrimento da ave, porém, ao mesmo tempo, não havia nada que eu
pudesse fazer para salvá-la, pois sua morte era inevitável naquelas
condições.
Incomodado com a cena e sentindo compaixão pela ave, decidi que o mais
correto a se fazer seria matá-la de uma vez, para pôr fim em seu
sofrimento. Porém, eu não possuía nada comigo que pudesse ser
utilizado para matar a ave, então teria que pisar em cima dela, com
toda a minha força. Olhei em seus olhos e vi o retrato da agonia. A
ave parecia implorar para que eu a matasse, então, relutante, fechei
os olhos e desferi um forte golpe com os pés, numa tentativa
fracassada de encerrar sua vida, mas que causou apenas mais sofrimento
ao animal e me deixou perturbado por acertar algo de textura maleável,
que se movia em agonia, em efêmera tentativa de escapar.
Com um forte sentimento de culpa, tentei pisar mais uma vez, para
matá-la, mas, novamente, a ave não morreu. Eu já entrava em desespero
por causar ainda mais sofrimento ao animal, em vez de encerrá-lo,
então, movido pela aflição, dei uma sequência de pisadas fortes sobre
o bicho, que finalmente encerraram sua vida.
Ofegante, me afastei e observei o corpo do animal, já inanimado. Eu
havia subido o morro para conhecer a natureza e havia visto o seu pior
lado. Passei meus momentos de introspecção pensando no que havia
acabado de acontecer e desde então, eu tive a consciência do quão
cruel ela pode ser e nunca mais a glorifiquei como havia feito.
Se desejar fazer algo em memória das vítimas, poderá, por exemplo, fazer menos uma viagem de automóvel (movido a combustíveis poluidores) ou diminuir a velocidade durante a viagem. Ambas formas de diminuir a emissão de gases responsáveis pelo eveito de estufa.
Até breve.