Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Contos das Estrelas

Neste blog são apresentados conteúdos literários. Para qualquer assunto podem contactar o autor via ruiprcar@gmail.com. Aceitam-se contributos de outros autores, de 4 a 24 de cada mês, relativos ao tema Natureza ou Universo :-)

Contos das Estrelas

Neste blog são apresentados conteúdos literários. Para qualquer assunto podem contactar o autor via ruiprcar@gmail.com. Aceitam-se contributos de outros autores, de 4 a 24 de cada mês, relativos ao tema Natureza ou Universo :-)

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Domingo - O Conto “Ilha de Santa Luzia” por Luísa F. - Pandemia

por talesforlove, em 22.11.20

Boa tarde.

Hoje apresentamos um conto por Luísa F. (Portugal) o qual foi premiado na Antologia Natureza 2018-2019. Nestes tempos de pandemia, recomenda-se cuidado na proximidade social em qualquer circunstância, de tal forma que as nossas vidas não sejam ainda mais afetadas. Neste momento, já temos a esperança de uma vacinação algures nos próximos meses.

 

Recomenda-se a leitura do conto “Ilha de Santa Luzia”.

 

Ilha de Santa Luzia


Quando me sentei, senti-os moverem-se debaixo das minhas pernas, sem os ver,
verdadeiramente, como se fossem transparentes; chamavam-lhes caranguejos fantasmas por terem a cor da areia fina e se confundirem com o ambiente. Tive
a clara impressão de estar em família e a sensação estranha de já ter estado
naquela ilha, a única com nome de santa no arquipélago das ilhas Afortunadas.
Por respeito a esses fantasmas tão familiares, por medo do ridículo, mas também
por ignorância, não me atrevi a falar no assunto ao meu pai, Branco (apesar de
ser um ilhéu muito tisnado) e um dos biólogos daquela pequena expedição.
Pedro era o seu assistente e tinha como missão principal a proteção da cagarra
de Cabo Verde, uma ave que nidifica no ilhéu vizinho e que o seu próprio pai
tinha caçado durante trinta e cinco anos, assim como muitos outros pescadores,
por se tratar de uma atividade tradicional. Milhares de crias foram dizimadas
nessa época, e não apenas as cagarras mas também os rabos-de-junco, com as
suas longas caudas, os alcatrazes, parecendo cavalheiros de nariz comprido, as
almas-negras de plumagem escura...que eram depois vendidos como cagarras.
Pedro achava que tinha uma dívida pessoal perante a natureza, contraída pelo
seu pai; mas, no seu entender, cabia-lhe a si e aos outros jovens devolver à ilha
essas espécies quase extintas.
A minha história começara muitos anos antes de eu nascer, mas os episódios
mais marcantes que recordava da infância eram os pesadelos frequentes com
enormes gatos e ratos vindos sabe-se lá de onde, que engoliam crias de aves
cujos ninhos estavam encravados na terra como pequenas manjedouras ou
berços de palha. O pediatra da altura descartou a hipótese de apneia do sono
mas tentou inteirar-se da nossa história familiar. Não foi difícil para o meu pai,
solteiro e dedicado, perceber que a explicação se encontrava naquele espantoso
lugar, que visitaríamos um dia. Explicou-me o que eram animais exóticos:
— Não são, como pensamos, aqueles animais estranhos e com um aspeto
diferente, fora da rotina e muito extravagantes, sabes? Quer dizer, não são só
esses; exóticos e invasores, para nós, são animais que vêm de outros sítios, de
outras terras e climas, estranhos à forma de vida da terra onde nos encontramos.
Exótico, como emigrante ou imigrante, como estrangeiro, está relacionado com
o nosso ponto de vista.
O meu pai não sabia exatamente o que era ser criança, porque ele próprio tinha
sido criado assim pelos meus avós, Luzia e Vicente. Quando as explicações se
alongavam, eu adormecia ao som das suas palavras, do alto dos meus seis anos,
sabendo que nessa noite não voltaria a ter pesadelos mas talvez sonhasse com
belas aves, com peixes-agulha e peixes-voadores muito curiosos e ágeis, com
águas cristalinas através das quais se viam os nossos próprios pés e o fundo do
mar.
Luzia era uma mulher falsamente seca e voluptuosa, que tinha abandonado a
ilha na década de 1970 com Vicente, quando ambos andavam pelos trinta. Não
se sabe em que circunstâncias se terão lá fixado, pois fizeram segredo disso até
à hora da partida, que ocorreu de forma misteriosa, depois de terem criados os
dois filhos, Branco e Raso, cujos nomes homenageavam os ilhéus vizinhos (os
outros dois integrantes da reserva natural), formando o que se tornaria, em
1990, património público, em conjunto com a ilha de Santa Luzia, deserta, mas
não solitária, ou, por assim dizer — deserta por deixar de sê-lo. Nessa época já
os dois irmãos tinham atingido a maioridade.
Acontece que a minha avó não engravidava porque a ilha estava interdita à presença humana,
salvo raras exceções, como eles, alguém que se batesse pelas espécies nativas; mas ainda assim
a santa exigiu que em troca da promessa de fertilidade o casal batizasse os filhos com os nomes
dos ilhéus circundantes, que seriam para sempre os seus orientadores de carácter e mentores,
quando os pais já não pudessem cumprir essa função por darem por terminada a sua vida terrena
(depois de se terem banhado em águas claras e convivido com as mais magníficas espécies de
aves da região, e aprendido a dar os bons dias aos caranguejos-fantasmas).
Os filhos vieram, assim, após inúmeras preces, depois de Vicente ter subido à
Topona, o ponto mais alto da ilha (quase quatrocentos metros acima do nível do
mar) e aí ter rogado a Santa Luzia que os abençoasse com descendência. Vicente
parecia por vezes um pouco distante, porque reservado, mas podia mostrar-se
também muito próximo, afetuoso e atento aos detalhes.
Luzia juntara-se ao marido nessas preces, apesar de estar cada vez mais
convencida de que era estéril; mas quando abandonaram a ilha tinham a certeza
de que seriam pais em breve. Santa Luzia era quem lhes poderia valer, por ser
mulher, por ser santa e por ser, também ela, desabitada de seres humanos.
Branco, o meu pai, ao contrário do meu tio, sempre tinha sido um cético e
escusava-se a falar de coisas que não pudesse explicar pela ciência, mesmo que
fizessem parte da sua história. A verdade é que oito meses depois dava-se ao
mundo, já com um tufo de cabelo como uma crista rochosa, e nove meses mais
tarde nascia o tio Raso, à distância de um olhar. Os dois irmãos sempre se
distinguiram em tudo, no feitio, no aspeto, nos interesses. Raso protegia dezenas
de aves marinhas que sobrevoavam as arribas aproveitando a riqueza das águas
que circundavam o seu patrono, de relevo quase predominantemente plano, e
seis espécies diferentes que aí construíam os seus ninhos. Era cada uma mais
bonita que a outra. O meu tio era um homem pequeno e castanho, mas bastavam
três dias de chuva para lhe converter o ar apagado numa exuberante alegria. Já
o meu pai tinha como mascote o lagarto-gigante, o qual, felizmente, nunca se fez
presente nos meus sonhos; constava que tinha sido extinto no início do século
XX, no entanto ele mantinha a convicção de que alguns espécimenes pudessem
ter sobrevivido nos rochedos escarpados do ilhéu Branco, seu homónimo e
padrinho.
Pedro e eu fomos dar uma volta pelos ilhéus antes de darmos por findo o dia em
Santa Luzia; contei-lhe dos meus pesadelos com gatos e ratos e ele confidencioume que começavam a ser um problema na ilha. Eram espécies exóticas — e não
pude deixar de sorrir ao lembrar-me das explicações detalhadas do meu pai.
Falei-lhe nos meus avós e com surpresa constatei que era um assunto do qual
não tinha o menor conhecimento. O meu pai não falava da família, era austero
e reservado, com um temperamento acidentado e espinhoso, a léguas do seu
irmão, plácido e previsível. Pedro apenas conhecia a lenda — a história que se
contava entre os pescadores — segundo a qual nos anos 1970 o casal que ali
vivia tinha abandonado a ilha de Santa Luzia.
Dizia-se, em conversas de homens do mar, que eles talvez não tivessem dali saído
e que ainda hoje andariam disfarçados de caranguejos confundindo-se com o
vasto areal para permanecerem em paz. Fiquei arrepiada com aquela
interpretação que assumi como uma revelação, uma vez que eu própria já o tinha
intuído. Mais um assunto que o meu pai não entenderia.
Estávamos em 2014, quando eu acabara de cumprir vinte anos e terminava uma
licenciatura em Biologia Marinha. Pedro mostrou-me as pequenas calhandras
do Raso e os seus ninhos no solo e eu tive que confessara-lhe que o meu pai
sempre me pedira que desse continuidade ao seu trabalho na proteção dessa e
de outras espécies exclusivas da região, que chamávamos endémicas. Tal como
as tartarugas-marinhas, também essas espécies estão em vias de extinção,
principalmente por causa da predação humana. Santa Luzia era um local onde
se fazia caça indiscriminada, longe dos olhares indiscretos, mas agora também
os pescadores estão sensíveis aos problemas ambientais e ajudam a protegê-las.
Entretanto os turistas não são ainda bem-vindos, assim como no tempo em que
Luzia e Vicente ali conceberam o seu primeiro filho.
Voltámos finalmente a Santa Luzia e junto com o resto da equipa rumámos a
São Vicente, mesmo em frente. Pedro e eu fomos ficando cada vez mais
próximos e decidimos acampar em Santa Luzia, completamente isolados,
enquanto tentávamos perceber como varia a fauna da região e procurávamos
conhecer-nos melhor. O meu pai acatava tudo o que fosse para o bem da região
e das espécies endémicas, porém reagiu com alguma desconfiança.

Prometemos trazer-lhe resultados em breve, para o convencer. O biólogo
concordava mas o pai resistia. A nossa rotina incluía a vigilância de ninhos de
cagarras para verificar o crescimento das crias. Pedro e eu pesámos
criteriosamente todas essas pequenas aves e sei que, nessa agradável rotina,
ele sentia que resgatava a dignidade do pai. A ilha já não era deserta, mas
tampouco era habitada: nós fomos privilegiados por, durante alguns dias,
poder acompanhar o pulsar da vida naquelas paragens. Agora fazemos idas e
vindas regulares com os pescadores, sem o pai de Pedro, que já cristalizou no
fundo do mar. Tentamos reintroduzir a raríssima calhandra em Santa Luzia,
essa ilha que nos habita e que apadrinha a nossa descendência.

 

Até breve.

 

 

 

Poesia - "A nossa bela ilha" por Rui M.

por talesforlove, em 30.11.18

A nossa bela ilha

 

Todos vivemos numa ilha, azul,

que é espaçosa é grande… imensa,

na sua vastidão circular, rugosa,

tal qual os nossos sonhos.

Mística do entardecer de Verão em Lisboa,

Rosa, ao largo do Largo do Camões.

 

Só temos esta ilha, num mar azul,

de uma escuridão atracada nas planícies,

e montanhas, onde flores florescem,

coloridos amores, que nascem, e elas,

frondosas, crescem, borbulham de vida,

e morrem, e com elas nós, insetos órfãos.

 

Só temos esta ilha.

Somos esta ilha.

Respiramos este mar.

Além vemos a cor giz lunar.

Descansamos na água primordial da nossa mãe.

 

Até breve.

Mais sobre mim

foto do autor

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D