Capítulo III por Rui M.
Já lá vão uns tempos desde que surgiram no blog dois primeiros capítulos de um conto a ser escrito a pouco e pouco. Ainda sem título. Um possível primeiro título poderá ser: Num dia que é nosso.
Capítulo III
Aquele caminho revelou-se também ser o destino, o que quer que isso seja, e talvez não seja mesmo nada, apenas uma imaginação nossa, um fruto imaginário na Praça da Alegria em Lisboa que resvalasse pelo declive daquela rua até à Avenida da Liberdade e fosse ao nosso encontro, sem que nada pudéssemos fazer além de aceitar esse facto e de ficar ali a ouvir uma música a vir do bar ali ao lado, também ela sem permissão para nos abordar mas ainda assim a gostarmos de a ter connosco.
Será aquele caminho uma coleção de destinos, será mais correto afirmar, e ali no Largo do Camões dei uns passos mas estava preso lá atrás, ali naquela rua a descer até ao rio e na Rua do Alecrim, nos estuques com formas de instrumentos musicais, a música novamente a assolar-me, na luz de Verão ali única como uma visão de uma montanha imponente e tão bela que nos preenche até onde não sabermos compreender e depois aquela inclinação a caminho de um céu cor de melão amadurecido e emoldurado com buganvílias rosa violeta que cativam as nossas retinas, embrulhando aqueles edifícios antigos e quiméricos, com varandas de pedra branca, sólida como o tempo ao qual estes e elas sobreviveram. O branco daquele frio feito de rocha ali a dar um toque de Outono frio a um calor humano em digressão pelos dias sem nexo.
Esta Rua do Alecrim fazia-me sentir, em qualquer momento do ano, o calor ondulante das asas de andorinha a voar e isto tudo ao mesmo tempo que o seu piar criava, sempre, uma nova Primavera a cada momento daquele alegre movimento. E ainda faz. E ali se materializava o amor maternal da natureza, sempre desventrada para nos acolher, nos alimentar de sonhos e crescimentos sem fim e sem extinção de uma qualquer força adolescente. Sons de outrora de músicas, novamente, a sair por portadas de janelas a aconchegar os nossos peitos, estimulando os nossos tímpanos, cuja existência julgávamos ser apenas um detalhe de um qualquer livro de anatomia escrito para nos ocupar os melhores tempos das nossas vidas. Fugas ao final do dia, calor de um scate ou um carrinho de rolamentos debaixo dos nossos pés, um braço raspado na terra, e pedras que em nós se espetam durante uma queda, e estrelas, sempre elas, que nos mandam para casa, como nossas tutoras da vida………………………. Sem fim a sua luminosidade, tal qual o nosso sentir, sempre maior que o tempo durante o qual o temos como parte de nós, nosso sangue e ser, sempre enorme, sempre mais vivo que aquele alecrim a que alude o nome desta rua. Constantemente verde como a planta cujo nome é homónimo do daquela rua. Nossa. Minha. Tua.
Ah! Meu amor, os meus olhos não choram por ti, como na canção do alecrim, mas choram por esta rua sempre cheia dos tais estuques de música e horizontes de verões sem fim, de cores mais quentes que o sangue nas minhas veias e pouco menos vermelho que uma rosa recém brotada.
O Jardim da Estrela ficava bem lá à frente, como uma quimera que se vai formando com o tempo na nossa mente a partir de alicerces feitos de minúsculos pedaços de memórias que perduraram, tais como bocadinhos de cerâmica entre uma qualquer ruína antiga. Imaginava-o agora como uma via láctea cujas estrelas eram árvores, os ramos, caminhos desenhados em mapas de luz, entre reflexos neles, e nebulosas de poeira tais quais matérias-primas para os anéis de Saturno, misturados com gelo, talvez o frio daquele dia congelasse não apenas o universo das minhas esperanças, mas também exatamente a água daquele céu feito de lembranças. Nada mais selvagem e livre que as memórias do passado, que nos tomam de assalto sem aviso prévio, sem nos deixarem responder e ficamos imobilizados até que o vento, tal qual testemunho do vácuo universal, nos leve para outra constelação e outros céus feitos de luz e paz.
E de tantos instantes esperar ali os meus olhos desenhavam uma ilusão de maior proximidade, lá ao fundo era a minha casa, onde aqueles braços vegetais sempre me abraçavam e apoiavam ainda que eu, traidor involuntário, os esquecesse por longos períodos, de tempos imprevistos. Mas sim para elas o tempo é o do universo, de uma vastidão que o meu nunca alcançará…………….. Não lhes seria tão penoso esperar. Eu estava ali sozinho naquele dia e aqueles sons cercados por silêncio humano.
A proximidade era feita de cheiro que o tal vento me trazia gélida e suavemente, ainda não era o odor a erva a crescer ainda verde e viçosa, mas, este tão só sinalizava uma humidade que parecia vir de uma lenha exposta ao frio, cortada por alguém que carinhosamente a preparara para alguém indefeso. Sentia-as, as estrelas digo, à distância como se lentamente o próprio local me iludisse com um falso sentimento de familiaridade, porque ainda não estava lá sendo como se estivesse……. Era verdade era já vizinho da fronteira daquela terra à qual eu pertencia e isso bastava-me.
Mas ainda faltava caminho a percorrer para ver aquele local único. Eu descia aquela estrada, para mim sem nome, e os meus olhos cruzavam-se com os de uma senhora de idade avançada que a partir de uma janela me fitava quase como um ser de outro planeta. Acenara-me e sorrira-me, eu parei e respondi. As ruas estavam desertas, o vento tudo enchia, e ela de cabelos brancos atrás do vidro, não tinha o cabelo a ondular como sucedia com o meu. Eu era aquela pessoa que estava ali mas que na realidade deveria não estar por causa da pandemia... Mas isso não interessava a ninguém, à minha pessoa certamente que não e o meu olhar descansava finalmente em olhos maternais, plenos de vida e de sabedoria; sem troca de palavras, sem redação cuidada, sem uma palavra dita, sem que as portadas se abrissem, sem que tudo isto fizesse falta para nos dizermos um ao outro: como foi bom ver-te hoje, aqui e agora, neste momento só de vento, só de frio, só de sons naturais e urbanos, só de: de estarmos a sós.
Foi tão bom. Sorri de novo e fui por ali abaixo. Debaixo dos meus pés gerava-se um som quase como o gelo de inverno em estrada de terra batida, era quase como se cristais se partissem à minha passagem, e afinal era areia, afinal ia feliz ainda que sentisse que aquele olhar verdadeiro e integro poderia jamais voltar a cruzar-se com o meu… mas havia-se cruzado. E fui. Até que a estrada larga, que eu procurava, ficou à minha frente, ornamental e longa como qualquer coisa pura e natural que eu tinha dentro de mim. Tão bom...
Até breve.